Ordens profissionais: quebrar a espinha à burguesia
A lei aprovada pela Assembleia da República assemelha-se mais a uma declaração de guerra de classes do que a um esforço legislativo visando a solução de um problema concreto.
Há coisa de meio século, andava eu na universidade, era frequente ouvir os mais destacados dirigentes estudantis de orientação maoista dizer que era necessário quebrar a espinha à burguesia, querendo com isso significar que só a eliminação física desses inimigos de classe resolveria os problemas do povo. Lembrei-me daquela expressão juvenil e inconsequente ao ler recentemente o texto de uma lei aprovada pela Assembleia da República que se assemelha mais a uma declaração de guerra de classes do que a um esforço legislativo visando a solução de um problema concreto.
Refiro-me à lei das associações públicas profissionais, mais conhecidas pela designação de ordens profissionais. Concebida nos tempos da troika, a Lei 2/2013 tem data de 10 de janeiro de 2013. Aqui há quase dois anos, e no rescaldo de ações de contestação social dos médicos e enfermeiros, os dirigentes do Partido Socialista afadigaram-se em declarações públicas no sentido de que a lei das ordens tinha de ser alterada. Ainda houve um projeto de alteração apresentado na Assembleia da República, mas o Governo minoritário de Costa caiu e a iniciativa transitou para a atual legislatura de maioria absoluta.
Depois de muitas consultas, alguma polémica e umas quantas manobras de diversão, o projeto de lei foi aprovado a 22 de dezembro do ano passado com os votos favoráveis do PS, PAM e Iniciativa Liberal, a abstenção do Bloco de Esquerda e do Livre e os votos contra do PSD, PCP e Chega.
O novo diploma altera significativamente as normas relativas à organização e funcionamento das 20 ordens existentes no país, onde estarão inscritos cerca de 450.000 profissionais. As novas disposições preveem: um órgão disciplinar em que nenhum profissional da ordem em causa pode ter assento; um órgão de supervisão no qual apenas 40% dos membros podem estar inscritos na ordem (outros 40% serão professores da universidade frequentada pelos profissionais da mesma ordem); um júri de admissão à ordem (incluindo a avaliação do estágio respetivo) formado apenas por profissionais estranhos à ordem. A lista precedente, embora reveladora, não é exaustiva.
Não se percebe as razões que terão levado o grupo parlamentar do PS a tentar alterar de modo tão drástico a lei de 2013, já de si marcada pelo hiperliberalismo que, por nosso mal, tem consumido o projeto europeu desde há três décadas. Nomes sonantes do Governo têm afirmado sem rebuço que se trata de imposição de Bruxelas e os mais afoitos dizem mesmo que sem a aprovação destas alterações não será libertada a terceira tranche do Plano de Recuperação e Resiliência. Nada mais inverosímil. Os documentos produzidos pela OCDE desde a aprovação da lei vigente – apenas parcialmente cumprida, diga-se em abono da verdade –, as diretivas europeias e até as recomendações da Autoridade da Concorrência aconselham soluções, aliás já previstas na referida lei, visando por fim a práticas corporativas, restritivas e anticoncorrenciais. Mas em lugar algum advogam medidas tão extremas como as contempladas no diploma aprovado a 22 de dezembro.
Talvez essa tenha sido uma das razões por que o Presidente da República decidiu há dias não promulgar a lei e, em vez disso, enviá-la para o Tribunal Constitucional com vista à fiscalização preventiva da sua constitucionalidade. Em causa estará a violação de garantias legais de funcionamento das ordens profissionais, ao serem ofendidos os princípios constitucionais da autorregulação, da democraticidade, da igualdade e da proporcionalidade.
Não tenho muita fé na sensibilidade do TC, cada vez mais dado a exercícios de erudição jurídica e de hermenêutica sintática. Teria preferido ver Marcelo exercer o direito de veto político, posto tratar-se patentemente de uma alteração legislativa que ofende o interesse público e põe em causa o regular funcionamento de instituições que enformam a democracia económica e social do país.
Percebe-se que o veto presidencial poderia ter um custo politico e acarretaria alguns riscos, posto que o PSD votou contra o projeto de lei e a maioria absoluta do PS poderia sempre voltar a aprovar a lei, que o PR teria então de promulgar. Mas era um sinal inequívoco de que o PS tinha ultrapassado uma linha vermelha da nossa democracia.
As centenas de milhar de profissionais hoje inscritos nas ordens são a espinha dorsal da estrutura económica e social que suporta o sistema político nacional. As velhas instituições profissionais não são um território propício a aventuras com propósitos revanchistas e clientelares. Não foi certamente por acaso que o Chega e o PCP votaram contra esta lei. Os partidos mais radicais do regime vão capitalizar no erro socialista. As classes médias, hoje em processo de acelerada proletarização, não aceitam facilmente as ofensas aos seus direitos tradicionais e até seculares. Podem apanhar pancada, mas não se esquecerão de quem empunhava o pau.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico