Agenda do Trabalho Digno: poderosa e virtuosa?

A Agenda é frouxa, até algo pífia, em muitas das alterações que traz. Mas não é perniciosa, não olha com hostilidade para os direitos dos trabalhadores, não introduz mais retrocessos na lei.

Depois de um longo e algo acidentado processo legislativo, o Parlamento apresta-se para aprovar a chamada “Agenda do Trabalho Digno”. Trata-se, como é sabido, de mais uma reforma legislativa em matéria laboral, que vai introduzir numerosas alterações na nossa lei do trabalho, designadamente no Código do Trabalho. A Agenda, dizem uns, é poderosa, vai alterar decisivamente as relações laborais e promover, em larga escala, a dignidade do trabalho. A Agenda, dizem outros, é “mais do mesmo”, mudando algo para que tudo fique na mesma, correspondendo a autêntica publicidade enganosa.

Pela minha parte, diria que nem uns nem outros têm razão. A Agenda fica, seguramente, aquém das expectativas, deixando intocado, ou quase, muito daquilo que a troika nos legou, no plano da legislação laboral. O exemplo da compensação devida em caso de despedimento coletivo (ou por extinção do posto de trabalho, ou por inadaptação) é esclarecedor: uma compensação que correspondia, antes da troika, a 30 dias de salário por cada ano de antiguidade, que depois passou para 20 dias de salário por ano, logo depois para 12 dias de salário por ano… e agora, uma década volvida, vai passar, por força de tão pujante e audaciosa Agenda, para 14 dias de salário por ano! E mais: esta tão disruptiva norma não vai ser aplicada retrospetivamente, como é regra no Direito do Trabalho; a compensação por despedimento só será calculada à razão de 14 dias de salário por ano a partir da data da entrada em vigor da nova lei, a antiguidade pregressa do trabalhador despedido, pós-Agenda, continuará a ser calculada à razão de 12 dias de salário por ano…

Eis um exemplo, entre tantos outros, de como esta Agenda pouco ou nada tem de poderoso. É frouxa, é até algo pífia, em muitas das alterações que traz ─ como é o caso, só para fornecer outro exemplo, com a revalorização do pagamento majorado devido pela prestação de trabalho suplementar, que só vai ser aplicada a partir da 100.ª hora anual de trabalho extra prestado pelo trabalhador.

Sejamos, porém, claros. A Agenda não é poderosa, como reclamam os seus arautos, mas também não é perniciosa, como alegam os seus detratores. Desde logo, a Agenda não olha com hostilidade para os direitos dos trabalhadores, não introduz mais retrocessos na nossa lei do trabalho, não é uma típica agenda flexibilizante, precarizante ou desestruturante. Por isso mesmo, aliás, também não faltarão vozes a criticar a Agenda a partir de uma outra perspetiva, quiçá acusando-a de ser pouco market friendly

Não. A Agenda representa um progresso, inequívoco, em relação ao atual estado da nossa legislação laboral. Há avanços em várias áreas, alguns assinaláveis. É o que sucede, por exemplo, em matéria de trabalho prestado no âmbito das plataformas digitais, em que o novo art. 12.º-A do Código do Trabalho, mais ou menos imperfeito, representa, seguramente, um importante passo no sentido de clarificar a qualificação jurídica da atividade prestada via apps, dando combate às teses, que a realidade tantas vezes desmente, segundo as quais aqueles que trabalham para plataformas, como os estafetas ou motoristas, são prestadores de serviço autónomos, quando não microempresários.

É o que sucede, para dar outro exemplo, em matéria de contratação coletiva, em que a Agenda rompe com o sistema introduzido na lei pelo Código de Trabalho de 2003 e passa a conferir aos sindicatos o poder de evitar os vazios de regulação coletiva derivados da caducidade das convenções coletivas, ainda que mediante o recurso ao mecanismo da arbitragem necessária.

É ainda o que sucede, para dar um último exemplo, em matéria de renúncia, pelo trabalhador, aos seus créditos, àquilo que lhe é devido por força do contrato de trabalho, em que a Agenda tenta romper com a inaceitável prática há muito instalada no nosso tecido empresarial, consistente em fazer com que o trabalhador abdique dos seus direitos quando o contrato termina e ele se apresta para receber o seu último salário – esta renúncia vai passar a ser tida como inválida pela lei, conservando o trabalhador a faculdade de reclamar aquilo que entenda ser-lhe devido em tribunal.

Muitos outros exemplos poderiam ser avançados, na contratação a termo ou no trabalho temporário, na parentalidade ou em relação ao cuidador informal, na informação e transparência algorítmica, nos poderes da ACT e do Ministério Público em matéria de despedimento ilícito, etc. O que se deixa escrito basta, contudo, para vincar o fundamental: a Agenda não é poderosa, mas é virtuosa, não contém retrocessos, mas sim progressos, não traz recuos, mas sim avanços. Sempre avanços. Sim, pequenos, aquém do que alguns desejariam, aquém das expectativas de muitos, desde logo, decerto, no seio do movimento sindical. Mas a frustração das legítimas expectativas não deve levar-nos a obnubilar as coisas, a confundir ligeiros progressos com verdadeiros retrocessos, nem o facto de muita coisa não mudar nos deve fazer perder de vista que, onde muda, a Agenda muda para melhor ─ ainda que, por vezes, mude poucochinho.

Sim, houve muita expectativa que se frustrou, de modo que talvez nem todos considerem acertado, dadas as malfeitorias que persistem, dizer que a Agenda muda a nossa lei do trabalho para melhor, dignificando quem trabalha. Na verdade, nem se percebe bem por que razão subsistem algumas malfeitorias, tais como, por exemplo, a iníqua presunção legal de aceitação do despedimento por parte do trabalhador, pelo simples facto de ele não recusar a compensação que a lei obriga o empregador a pagar-lhe, quando o despede. Compreendem-se, por isso, as reticências de alguns. Mas então, assim sendo, digamo-lo de outra maneira, quiçá mais consensual: a Agenda “despiora” a nossa lei do trabalho. Isto é, a meu ver, indiscutível.

E, portanto, bom é que a Agenda seja aprovada, com todas as suas lacunas e imperfeições, e apesar de todas as suas lacunas e imperfeições. Porque, afinal, amanhã é outro dia e, como diz a sempiterna palavra de ordem, “a luta (pelo trabalho digno) continua”…

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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