Os tintos da Galiza, os tintos do Dirk e a volta ao mundo com vinhos doces

Na sua apresentação em Portugal, a plataforma Lavinia mostrou vinhos espanhóis de vinhas velhas e castas raras, de Telmo Rodríguez, vinhos doces de todo o mundo e alguns ícones de Dirk Niepoort.

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Dirk Niepoort, Telmo Rodriguez e Juan Manuel Bellver no evento de apresentação da Lavinia em Portugal Mariline Alves

A apresentação do projecto Lavinia Portugal, em Lisboa, foi uma provocação bem pensada e melhor executada. No país das mil e uma castas e onde se faz Porto, Madeira, Moscatel de Setúbal ou Carcavelos, a equipa do Lavinia resolveu mostrar vinhos espanhóis de vinhas velhas feitos de castas mais raras, da autoria de Telmo Rodríguez, e vinhos doces de todo o mundo. Pelo meio, alguns ícones de Dirk Niepoort. Foram três horas muito bem passadas.

Telmo Rodrígez e a procura da raridade

Basco de nascimento e homem do mar por paixão, Telmo Rodrígez estudou em diferentes países, começou a fazer vinhos numa adega do pai e, em 1994, fundou a Companhia de Vinhos Telmo Rodríguez, que tem como objectivo trabalhar com castas autóctones e recuperar vinhas velhas, como forma de criar vinhos com “uma identidade do lugar muito vincada”.

Faz isso em diferentes regiões de Espanha, e, para esta prova, deu ênfase à Galiza, que tem, segundo ele, “mais biodiversidade que toda a área de vinha de França”. Em coerência, não trouxe Albarinos, concentrou-se na fabulosa e desconhecida região de Valdeorras. E daqui, com a marca Ladeiras do Xil, apresentou o Falcoeira branco 2019, o Falcoeira A Capilla tinto 2019, o LG Valbuxan tinto Lexitimo 2019 e o As Caborcas tinto 2019.

Já da Serra de Gredos trouxe o Pegaso Arrebatacapas 2019 e, de região de Toro, o Gago Viticultores Pago de La Jarra 2018. Se todos estes vinhos — de pequeníssimas produções — recusam a santíssima Trindade da extracção/álcool/ madeira, quase todos encantaram pela leveza e pela complexidade aromática, sendo que aquele que nos encantou sobremaneira foi o As Caborcas, por via do perfil aromático (frutos vermelhos e como que notas amanteigadas) e grande finura de boca. Um tinto feito de vinhas velhas em socalcos e onde estão plantas de Mencia (a nossa Jaen), Merenzao (o nosso Bastardo), Sousão, Godelho (a nossa Gouveio) e Garnacha (a nossa Tinta Miúda). É fascinante este mundo de castas que cresce do lado de cá e do lado de lá da fronteira, proporcionando vinhos diferentes em função do lugar e da interpretação do homem. Como disse Telmo Rodríguez, “talvez estes não sejam vinhos de competição, mas são vinhos que mostram o talento do lugar”.

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O basco Telmo Rodríguez começou a fazer vinhos numa adega do pai e, em 1994, fundou a Companhia de Vinhos Telmo Rodríguez Mariline Alves

Dirk e a capacidade de mudar mentalidades

O disco já está riscado, mas não há volta a dar: na história recente dos vinhos em Portugal há um antes e um depois de Dirk Niepoort, visto que, a partir do Douro, iniciou uma mudança de mentalidades que ainda se estende pelo país. Esta revolução pode dividir-se em três fases. Primeiro, romper com o paradigma dos vinhos concentrados do Douro; segundo, procurar a identidade do lugar onde os vinhos são feitos, no Douro, mas também na Bairrada e no Dão; e, terceiro, mostrar menos química e mais natureza em cada garrafa, num pingue-pongue entre as regras da biodinâmica e o conceito de intervenção mínima.

Para dar sequência à narrativa da prova, Dirk mostrou sete vinhos: Quinta da Lomba Garrafeira branco 2016 (Dão), Quinta de Nápoles tinto 2019 (Douro), Niepoort Vinha dos Lagares 2019 (Douro), Niepoort Lote D 2014 (Bairrada), Niepoort Lote D 2017 (Bairrada), Quinta da Lomba tinto 2016 (Dão) e Niepoort Turris 2017 (Douro). Deste lote, o vinho que mais nos surpreendeu foi o Lote D 2017, da Bairrada, pelo facto de estarmos perante um Baga que, tendo notas clássicas (mineral e vegetal), chega-nos à boca com um carácter acetinado que até poderia parecer um Dão.

Já para o autor dos vinhos, o preferido do Dão seria o Lote D 2014, que pouco tempo depois de nascer foi mais ou menos rotulado como o patinho feio da adega da Bairrada, por não ter nem aromas nem álcool que se visse. Mas como a teimosia é a sua imagem de marca, Dirk e o filho Daniel nunca desistiram do vinho. Aliás, Dirk também continua a teimar que, um dia, os consumidores internacionais esclarecidos vão perceber que Portugal, pela riqueza de castas e riqueza de denominações de origem num território tão pequeno, será a coqueluche dos vinhos do mundo”. Sonhar não custa.

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Dirk Niepoort mostrou sete vinhos no evento de apresentação da Lavinia em Lisboa Mariline Alves

Juan Manuel Bellver e os fascinantes vinhos doces não fortificados

Talvez se possam dividir os vinhos doces de todo o mundo em: a) vinhos fortificados (aqueles cuja fermentação foi interrompida com a adicção de aguardente ou álcool) e, b) vinhos doces naturais (sem adição de álcool). E a maneira de fazer vinhos doces sem adicção de álcool/aguardente é deveras criativa: com uvas botritizadas, com uvas geladas ou uvas que, depois de cortadas, estiveram várias semanas a concentrar açúcar (Vin Santo italiano, que também se produz na Grécia). Pelo meio, ainda temos o inusitado açoriano Czar, cujas uvas apanhadas em Outubro — sem o fungo Botrytis cinerea — fermentam por sua conta e risco, resultando daqui vinhos com níveis de doçura que variam de ano para ano. O Czar é tão fora da caixa que há enólogos que desconfiam da viabilidade do processo de fermentação.

Como explica Juan Manuel Bellver em entrevista ao Terroir, os vinhos doces não estão “de moda”, mas nunca deixará de haver um nicho de consumidores com desejo de os provar. Telmo Rodríguez, que também é produtor de vinhos doces naturais em Espanha, diz mesmo que “é um exercício de masoquismo produzir estes vinhos". "Tanto mais que, em muitos casos, temos de esperar muitos anos para os provar nas melhores condições." Anda assim, o mesmo enólogo avança que alguns vinhos doces podem ligar bem com pratos menos óbvios, como são os casos das lagostas, lagostins e outros mariscos.

Nós também podemos acrescentar que certos vinhos doces funcionam bem com caldos asiáticos ligeiramente picantes, pelo que uma das hipóteses para trazer os vinhos doces para a ribalta pode ser a alteração do momento de consumo. Ou seja, para o início ou para meio da refeição e não para o final quando já estamos satisfeitos de comida e vinho.

Os vinhos provados foram os seguintes: o Vin de Paille Anne et Jean François Ganevat 2014 (Jura, França), o Vin de Constance 2019, da Klein Constantia (África do Sul), Les Jardins de Babylone 2010, de Didier Daguenau (Juraçon, França), o Goutte d´Eau Sel du Soleil 2006, da Rousset-Peyraguey (Sauternes, França), o tokaij Aszu 5 Puttonyos 2003, de Samuel Tinon (Takj, Hungria), o Clos Saint-Urbain SGN 1998, de Zind-Humbrecht (Alsácia, França), o Quarts de Chaume, 1999, de Jo Pithon (Loire, França), o Chardonnay Trockebeerenauslese 1995, de Helmut Lang (Neusiedlersee, Áustria), o Centurion 2000, da Etko (Commandaria, Chipre), e um velhíssimo pedro ximénex Don PX Bacchus 1939, de Toro Albalá (Montilla-Moriles, Espanha). E ainda dizem que os nomes dos vinhos portugueses são difíceis...

Juan Manuel Bellver, director da Lavinia Espanha, orientou uma prova de vinhos doces de todo o mundo em Lisboa. A ocasião era o início da operação da plataforma em Portugal Mariline Alves
A Lavinia é uma das melhores plataformas de venda vinhos da Europa e abriu a operação em Portugal com uma prova de vinhos internacionais e nacionais de arromba, em Lisboa Mariline Alves
Evento de apresentação do site Lavinia, de venda de vinhos, em Portugal Mariline Alves
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Juan Manuel Bellver, director da Lavinia Espanha, orientou uma prova de vinhos doces de todo o mundo em Lisboa. A ocasião era o início da operação da plataforma em Portugal Mariline Alves

Pela fartura em prova, é fácil imaginar a profusão de aromas e a complexidade de sabores na sala do restaurante Kabuki, em Lisboa. Há vinhos com níveis de doçura próximos do enjoativo e outros em que a acidez lhes dá alma. Há vinhos com níveis de álcool comuns e depois coisas como um Chardonnay doce com 8 por cento de álcool, mas são sempre vinhos misteriosos e que dão muito prazer quando as ligações são bem planeadas.

Na cabeça ficou-nos, por ordem, o pedro ximénez de 1939, pelo facto de estar muito vivo, sim, e ainda, por nos encantar com os cheiros de madeiras velhas, eucalipto, menta, citrinos e especiarias, com uma boca viva. É impressionante como pode um vinho viver todos estes anos e ainda estar para as curvas. Segue-se o Sauternes, por quase nos parecer um perfume exótico (madeiras e uma infinidade de aromas químicos) com uma acidez impactante. E, por fim, o Quarts de Chaume 1999, pela finura e pela harmonia entre doçura e açúcar. Bom, e também pelo facto de já não se fazer, que isso sempre ajuda a romantizar uma prova que, a este nível, não voltará a acontecer. Há dias em que vale mesmo a pena ser jornalista.

Quem quiser conhecer o catálogo dos vinhos desta cadeia (vinhos estrangeiros e portugueses) pode fazê-lo através do site da Lavinia. São 2500 referências de 20 países.

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