O insustentável peso da habitação

Peso da habitação no orçamento das famílias torna Portugal um dos países mais vulneráveis da Europa aos choques de preços. Percentagem de famílias sem activos líquidos para acomodar aumentos é de 25%.

Foto
O aumento do custo de habitação, principal componente da despesa de muitas famílias portuguesas, leva a que outras despesas, mesmo as de necessidades básicas, sejam adiadas ou canceladas Ricardo Lopes/Arquivo Público

Diz-se comummente que Portugal é um país de proprietários, e que a pouca importância do segmento de arrendamento é uma das maiores falhas colectivas do funcionamento do mercado da habitação em Portugal. O último Censos, que tirou uma fotografia a Portugal num dado dia de Abril de 2021, confirmou que sete em cada dez habitantes vivem em casa própria. O que as estatísticas também têm vindo a demonstrar – nomeadamente as que são divulgadas pelo gabinete de estatística europeu, o Eurostat – é que em Portugal existe uma maior percentagem de famílias proprietárias de dois ou mais imóveis do que na Europa em geral.

“O problema é que as casas não são próprias, são dos bancos. E que as segundas casas não estão alugadas, e estão, aparentemente, vazias”, contrapõe Pedro Brinca, investigador da Universidade Nova SBE que, a par com João B. Duarte, docente e investigador na mesma universidade, assinou o ensaio A Importância da Habitação em Portugal: Uma Perspectiva Macroeconómica, que integrou a publicação editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), O Mercado Imobiliário em Portugal.

O que não tem segundas leituras possíveis é o peso que o sector da habitação e do imobiliário tem na economia nacional – contribui para cerca de um quinto do PIB português. O que explica que os ciclos de habitação estejam fortemente correlacionados com os ciclos económicos vividos em Portugal ao longo das últimas décadas. O peso que o sector da habitação tem no produto interno bruto português e, mais relevante ainda, no orçamento das próprias famílias acaba por desenhar uma especial vulnerabilidade a picos de inflação e a sucessivos aumentos de taxas de juro como as que a Europa está actualmente a viver.

No capítulo onde analisam o peso que o sector da habitação tem nas políticas macroeconómicas, Pedro Brinca e João B. Duarte desenvolveram uma análise às condições económicas destas famílias proprietárias, para conseguirem antever a resistência que o sector imobiliário teria em Portugal a choques agregados. E o que anteviram nas conclusões desse estudo, publicado pela FFMS em Abril do ano passado, é agora particularmente visível na realidade de muitas famílias, e audível nas muitas histórias de vida que mostram as famílias a fazerem verdadeiras gincanas para enfrentarem os desafios trazidos pela inflação.

Os custos de habitação constituem frequentemente a maior componente da despesa para muitos agregados familiares. Pelo que aumentos dos custos de habitação levam a que outras despesas, mesmo as de necessidades básicas, sejam adiadas ou canceladas.

Para além de ser uma componente relevante nas despesas mensais de muitas famílias (incluindo das proprietárias), a habitação é também o seu principal activo, a sua relevante poupança. E, em Portugal, a habitação é um activo relevante no balanço das famílias portuguesas – pesa 80% em relação à riqueza total. Mas é um activo com pouca liquidez, quando comparado com outros activos que poderiam constituir o portefólio das famílias e um “mealheiro” a que recorrer em caso de necessidade. Isto significa que, apesar de terem uma riqueza total bastante acima da média, estas famílias estão mais vulneráveis, porque boa parte da sua riqueza está em activos ilíquidos, que não podem ser usados.

Famílias “mão à boca”

Na literatura económica, estas famílias que detêm património imobiliário, mas não têm outra forma de poupança ou outros activos líquidos, são chamadas famílias “mão à boca”. Dentro desta doutrina, há as famílias “ricas” e as “pobres”, consoante tenham ou não mais activos, como planos de poupança e reforma, que também não podem ser mobilizados.

Mas todas elas são “mão à boca”, com pouca ou nenhuma riqueza líquida para enfrentar uma queda temporária e inesperada no rendimento. “São pessoas que consomem o rendimento que recebem”, explica João B. Duarte, acrescentando que não há nenhum juízo de valor ao consumo, antes uma crítica ao nível de rendimentos, que são baixos.

PÚBLICO -
Aumentar
Público

De acordo com os investigadores, há cerca de 25% de famílias nesta situação. Um valor que está dentro da média da União Europeia, mas que tem características particulares que tornam Portugal mais vulnerável. Nomeadamente, o facto de mais de 90% dos créditos à habitação terem sido contratados com taxas variáveis.

João B. Duarte tem complementado estes estudos e, na investigação ainda em curso One Money, Many Markets, mostra a particular vulnerabilidade de Portugal face a outros países europeus. “O banco central emite uma política para toda a zona euro, mas os países não respondem todos da mesma forma. Portugal e Espanha são dos que mais respondem a este aumento das taxas de juro, impactando o consumo. A Alemanha, por exemplo, praticamente não responde (porque também há um peso muito grande do mercado de arrendamento)”, diz João B. Duarte.

PÚBLICO -
Aumentar
Público

O BCE aumentou os juros por seis vezes consecutivas, e já avisou que o vai fazer, de novo, nos próximos dois meses. Nas previsões de Brinca, as taxas de juro deverão continuar a aumentar até Julho. Pedro Brinca refere que quando estas famílias mão à boca” enfrentam algum choque — inflação, desemprego — há um impacto directo na sua condição de vida, e têm de fazer ajustes muito substanciais no consumo de bens e serviços. O que pode amplificar uma crise económica.

Os dados do Censos 2021 revelaram que a dívida média das famílias endividadas é de 66 mil euros. Pedro Brinca cita o Banco de Portugal, e refere que a média do crédito à habitação dos novos contratos é de 126 mil euros.

“Um casal que tenha comprado uma casa por 136 mil euros em Fevereiro de 2021, com uma taxa de juro de 0,5% (que era o que pagava quando a Euribor era negativa) pagava uma prestação de 350 euros. Estamos a falar de há dois anos. Neste momento, paga 600 euros”, exemplifica. E avança com outro exemplo, numa área metropolitana, prevendo o que lhe pode acontecer, se a escalada continuar a aumentar: “Uma família que pagava uma prestação de 825 euros pelo empréstimo, com uma taxa de juro a 3,5% fica a pagar 1250 euros; se os juros aumentarem até aos 4,5%, como é esperado, a prestação pode chegar aos 1400 euros. Ou seja, tem um aumento de quase 600 euros”, antevê.

“As consequências destas medidas de combate à inflação para o bem-estar das famílias são desproporcionais”, sintetiza João B. Duarte.

O que se segue?

O choque de preços que está a ser enfrentado por estas famílias pode, ou não, amplificar a crise? “Sempre houve essa discussão, de como é que esta situação iria acabar. E eu sempre fui da opinião de que esta crise de inflação seria temporária. O Banco Central Europeu também tem deixado claro que são essas as expectativas”, diz João B. Duarte. O problema é que a inflação pode baixar, mas tal nunca significou que baixe o nível de preços, que se manterá elevado para os rendimentos que as famílias auferem.

Pedro Brinca acrescenta que, felizmente, a crise energética não chegou a ter a dimensão que se podia esperar, e a cadeia de abastecimento, afectada primeiro pela pandemia, depois pela guerra, começa a ser restabelecida. “Quando a guerra rebentou, o preço do trigo aumentou 25%. Não é expectável que enfrente esses aumentos de novo – era preciso haver uma guerra outra vez”, explica o economista.

João B. Duarte recorda que mesmo que a inflação desça a zero o nível de preços mantém-se elevado, pelo que o problema das famílias continua a não estar resolvido. “Os preços são permanentemente mais altos e têm de haver ajustes nos salários, caso contrário as pessoas perderam definitivamente o poder de compra. Em termos reais, estamos a enfrentar uma austeridade. E o Governo sabe disso”, afirma o economista.

Recordando que o Governo ganhou alguma folga orçamental com a inflação, sugere que haja preocupação em dar um apoio às famílias mais vulneráveis e que estão expostas ao crédito à habitação. “Não pode haver entregas de casas aos bancos, outra vez. Não será uma situação repetível”, sugere João B. Duarte.

Pedro Brinca refere que a situação da banca está mais sólida, e que a regulação e o Governo têm de estar particularmente atentos à forma como as famílias são apoiadas. “Os bancos não são obrigados a renegociar contratos, como às vezes se diz. São obrigados a ouvir o cliente, mas depois não há respostas concretas. Em Portugal não se sabe muito bem o que os bancos são obrigados a fazer. Em Espanha, o Governo foi bem mais agressivo neste aspecto, e deixou bem claro o que os bancos são obrigados a fazer”, alerta o economista.

De facto, as renegociações de empréstimos à habitação dispararam desde Outubro, mas são muitas as dificuldades na concretização das negociações. De acordo com a legislação, pode ser feita pela extensão do prazo do crédito e regresso ao período inicial passados cinco anos, ou outras medidas temporárias como a criação de períodos de carência de capital ou juros, ou o diferimento de parte do empréstimo para a última prestação. E, em alguns casos, a mudança de instituição financeira, que deveria ser uma possibilidade, acaba inviabilizada com a permanente subida dos juros a inviabilizar a própria negociação.

Tanto Pedro Brinca como João B. Duarte são cautelosos no optimismo para a saída desta crise, mesmo que a inflação venha a ter descidas históricas, como preconizam. “A poupança está a cair dramaticamente”, alerta João B. Duarte. O resgate dos PPR sem penalizações fiscais para pagar prestações do crédito à habitação foi mesmo uma medida avançada pelo Governo para ajudar as famílias a enfrentar as dificuldades.

Pedro Brinca recorda que Portugal tem até agora beneficiado de um clima económico favorável, com indicadores positivos ao nível do PIB e do emprego. “Entrámos em 2022 com uma enorme reserva de poupança, e com disponibilidade de comprar bens e serviços. Vínhamos de um longo confinamento. Não é à toa que Portugal cresceu 6,7% em 2022. Porque se está a comparar com 2021. Vamos ver o que acontece quando estivermos a comparar economia desconfinada de 2022 com a economia desconfinada de 2023...”, conclui.


Artigo alterado às 12h17 de 15 de Fevereiro de 2023. O resgate de PPR sem penalizações fiscais aplica-se no pagamento de prestações do crédito à habitação, e não na amortização do crédito à habitação.

Sugerir correcção
Ler 21 comentários