Mercado de arrendamento pode ter retorno, se for liberalizado
Um reset ao sistema legislativo e menos intervenção pública é a receita defendida por Victor Reis para um segmento que não tem conseguido impor-se como parte da solução na crise da habitação.
No estudo O Mercado Imobiliário em Portugal, que a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) lançou em 2022, há uma longa e exaustiva análise dedicada ao mercado de arrendamento, demonstrando as intervenções e as políticas públicas a que esteve sujeito ao longo da última década. É assinada por Victor Reis, um arquitecto de formação que chegou aos organismos públicos deste sector em 1991, então no extinto IGAPHE (Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado). Esteve no Instituto Nacional da Habitação (INH), e chegou a presidir o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) entre 2012 e 2017, organismo público cujos quadros ainda integra como técnico superior.
Nas discussões ideológicas entre esquerda e direita em que tantas vezes mergulha o tema, nunca escondeu o lado em que está, mesmo sabendo que a política que defende se baseia numa palavra que assusta – “liberalização”. O desafio lançado pela FFMS permitiu-lhe aprofundar as análises que tem feito e sistematizar a intervenção pública que houve no sector e os seus resultados. E, assegura, permitiu-lhe também comprovar que ainda há possibilidade de ressuscitar este segmento.
Estuda – e intervém, como gestor público – no sector da habitação e do mercado de arrendamento há décadas. Nesta análise mais aprofundada ao último século de políticas na habitação houve alguma coisa que o surpreendeu?
Em termos legislativos analisei, de facto, mais de cem anos de políticas e devo dizer que o que mais me espantou foi a sequência de congelamentos a que o mercado de arrendamento foi sujeito.
Encontrei coisas caricaturais, como a proibição de haver mediação imobiliária em termos de arrendamento, ou uma declaração no preâmbulo de uma lei a dizer que o que se devia fazer era apenas promoção pública de rendas e acabar com toda a promoção privada para garantir um controlo dos preços.
São afirmações de uma enorme infantilidade, mas que não levam a lado nenhum. Já outras medidas e decisões tiveram impacto, e as que levaram aos congelamentos sucessivos do preço das rendas tiveram muito impacto. Outras, como as medidas tomadas para penalizar os fogos devolutos, não têm tido efeito nenhum. Começou em 2005, primeiro com uma pequena percentagem, depois duplicou, triplicou... Agora já vai em cem por cento durante 12 anos e o resultado prático é nulo. Não tem qualquer influência, a não ser encher os cofres do Estado.
O estudo da FFMS centrou-se na análise até 2020. Os Censos 2021 vieram trazer novos dados. Alteraram alguma coisa na sua análise?
Os Censos trouxeram-me a confirmação mais surpreendente de todas: a de que o arrendamento teve um crescimento extraordinário na última década, relativamente a toda a trajectória que teve nas décadas anteriores. Nunca tinha havido mais do que 7 ou 8 mil novos contratos, isto nas décadas em que cresceu, porque na verdade esteve quase sempre em declínio.
Os Censos 2021 dizem que há mais 128 mil contratos do que em 2011. E isto é uma boa notícia que tem de ter uma leitura mais aprofundada, porque percebemos que nesta última década tivemos dois períodos distintos, um de crescimento e outro de retracção.
Como faz essa análise?
Sabemos, porque a Autoridade Tributária o disse, que em 2017 havia mais 140 mil novos contratos do que em 2011. Se agora há 128 mil, quer dizer que se perderam 12 mil contratos, entre 2017 e 2021. Estes ciclos coincidem com as opções políticas que foram tomadas.
Foi a reforma de 2012, que incluía a lei dos despejos, que teve este efeito de expansão, e o declínio veio com as alterações feitas a partir de 2016. O período de 2016-2019 é particularmente turbulento dentro da “geringonça”, porque havia duas forças quase opostas, de um lado o Governo, do outro a actividade no Parlamento.
Se a reforma de 2012 alavancou o arrendamento, o que acredita que o voltou a afundar a partir de 2016?
Mais do que as iniciativas legislativas, foi o discurso político. Bastam umas quantas declarações políticas, são suficientes para espantar a caça. E naquela altura foram tantas, que as pessoas fugiram, para o turismo, o alojamento local, os “vistos gold”…
Há outro exemplo de como as declarações políticas afastam as pessoas. Olhemos para o alojamento estudantil, que também está em retracção. O que é que leva as pessoas que antes conseguiam fazer um pé-de-meia a alugar quartos a optarem por deixar de o fazer? Lemos várias notícias a constatar que a oferta diminuiu. Mas como é uma coisa muito subterrânea e paralela, não é declarada, não é escrutinável, vamos continuar com dificuldade em perceber.
Que conclusão retira?
Sou um defensor de que é preciso deixar o mercado funcionar, e o exemplo do arrendamento confirma o que eu digo: houve mais 140 mil contratos. Obviamente, depois é preciso uma política para lidar com situações dos despejos, tal como é preciso seguradoras para lidar com acidentes de viação.
Continuamos a ter 1,8 milhões de habitações que não são de uso permanente numa altura em que estamos a prever uma situação de escassez. Como trazê-las para “o mercado”?
É uma situação estranha. Temos 1.800.000 casas que não são de uso permanente: 1.100.000 de segundas habitações, e 700 mil devolutas. Obviamente, uma boa parte disto pode não estar com condições de habitabilidade. Mas bastava pensar que 6% disto – ou seja, cerca de 100 mil casas – têm condições de habitabilidade ou podem facilmente ser colocadas com condições de habitabilidade, para nós termos um fluxo de oferta colocada do mercado que alterava completamente os problemas com que estamos.
As medidas fiscais, tanto as que penalizam os devolutos, como as que incentivam os proprietários a colocar imóveis no arrendamento acessível, não têm surtido os efeitos desejados.
É óbvio que o Governo tem de dar o braço a torcer e reconhecer que aquilo que se andou a fazer está errado. Tem de haver um completo reset ao edifício legislativo, tem de se rasgar todas estas leis, e fazer tudo de novo.
O que eu sei é que há o objectivo assumido de aumentar o parque público habitacional, passar de 2% para 5% – ou seja, passar de 120 mil casas para 300 mil. Tem de se construir 180 mil casas. Cem mil casas custam 10 mil milhões de euros – veja-se pelo preço unitário dos concursos que estão a ser lançados, inclusive pelo IHRU. Vamos ser razoáveis. O Estado não tem dinheiro, nem capacidade para fazer isto. Nem é com as 26 mil casas do PRR – que, infelizmente, acho que não vamos conseguir construir – que o mercado vai ser influenciado. É uma gota de água num oceano de necessidades. Isto não vai acontecer, não tenhamos ilusões.
Mas agora existe a pressão de executar o PRR.
E isso é triste também, porque vai ser feito sem qualquer sentido de prioridade e de necessidades. Aquela conversa do Governo a acenar com os cem por cento a fundo perdido... É a conversa do “gastem, gastem, gastem”. É óbvio que existe escassez, e que a escassez provoca especulação.
Porque há tão pouco interesse no mercado de arrendamento, se os investidores sabem que há procura e pode haver rentabilidade?
O problema de fundo é a falta de confiança neste mercado. Isso foi visível quando se criou a renda acessível. Não era para ser promovida pelo Estado ou pelas câmaras. Era uma iniciativa para levar os proprietários a colocar as casas no mercado de arrendamento mediante benefícios fiscais. E o que aconteceu? Não houve resposta.
Percebe-se porquê?
É mesmo um problema de confiança. As pessoas preferem ter as casas vazias a ficarem quase desapossadas delas. Veja-se o caso da actualização das rendas para este ano de 2023. O INE diz que o aumento seria de 5,43%. A decisão do Governo é que será 2% e que compensa os proprietários em sede de benefícios fiscais em 2024.
Mas o que acontece aos proprietários que colocaram casas no arrendamento acessível e as entregaram ao IHRU para arrendar? Como é que compensa em sede de benefícios fiscais aqueles que estão isentos? Só podem actualizar com 2% e depois já não são compensados. Foram penalizados, outra vez.
No estudo defende que é errado pensar-se que a compra de habitação com recurso a crédito é mais vantajosa do que o arrendamento. Entramos numa fase de aumento de juros que vai penalizar os créditos à habitação. É agora que todos se aperceberão disso?
Aí encontra outra questão curiosa. As taxas de juro sobem, e os cidadãos têm de aguentar com a pancada. As rendas deviam subir 5,4%, mas o Governo limita os aumentos até 2%. São medidas absolutamente contraditórias para quem tem uma política – ou que supostamente devia ter – de uma visão de longo prazo. Infelizmente, essa visão não existe. O Primeiro Direito é de 2017, as estratégias locais são de 2018, as primeiras produções de casas começaram, quando muito, em 2021. E se não fosse a pandemia, e o PRR, não tinha havido nada. E agora vamos construir casas numa altura de subida de preços. Como estratégia, está tudo errado.
Desafio-o a transformar a interrogação que pôs no título do seu estudo numa afirmação. Afinal, há ou não há retorno para o mercado de arrendamento?
Os Censos de 2021 dizem que pode haver retorno. Mas para isso tem de haver liberalização. A palavra tem uma carga horrível, mas a única forma que há-de levar a que as pessoas tenham confiança no sistema é liberalizando-o.
Obviamente que tem de vir acompanhado de medidas sociais de defesa e protecção das situações extremas em que há despejos. Mas é preciso liberalizar. O que não pode ser possível é continuarmos com políticas destas, porque esta, sim, provoca escassez.