Alojamento local e os preços do imobiliário: culpados, mas pouco
Associação diz que culpabilização do AL pelo aumento dos preços desvia a atenção dos problemas na habitação. Investigadores confirmam: o boom deste regime não explica todas as subidas de preços.
A pergunta foi feita com clareza. A resposta foi dada com convicção. Quando questionada sobre se o alojamento local (AL) seria ou não um grande responsável pela subida do preço das casas, a economista e investigadora Susana Peralta respondeu que sim, “há uma relação”. Mas, acrescentou de imediato que o alojamento local “está muito longe de ser o único responsável e provavelmente não é sequer o principal”.
No entendimento da professora da Universidade Nova, que é também colunista do PÚBLICO, “há um foco excessivo nas responsabilidades do AL” no aumento dos preços residenciais, quando, afinal, há tantas variáveis a concorrer para um problema que é muito grave, e muito complexo”. “Temos um problema de acessibilidade que é muito grave, mas estou muito longe de pensar que este problema foi proporcionado pela existência de alugueres de curta duração”, argumenta.
A percepção generalizada que existe na opinião pública justifica-se pela coincidência que existe entre o aumento do número de registos de unidades de alojamento local, para dar resposta a uma crescente procura turística, e o crescimento dos preços do imobiliário. Entre 2016 e 2019, o preço médio de venda por metro quadrado de Lisboa e Porto aumentou, respectivamente, 68,2% e 61,9%.
Estes números não impressionam Ricardo Guimarães, director da empresa de estatísticas Confidencial Imobiliário, que recorda que, por se ter transformado numa fonte de procura no mercado residencial, em especial no quadro de imóveis alvo de reabilitação urbana, localizados nos centros históricos, o alojamento local trouxe “naturalmente” um tipo de actividade que veio pressionar os preços no mercado residencial.
“Essa análise ignora o facto de que sem o alojamento local muitos desses imóveis não teriam sido reabilitados, o que traria externalidades negativas”, começa por dizer Ricardo Guimarães, lembrando que pode estender esse comentário também às rendas residenciais, dizendo não ser nada evidente, “bem pelo contrário”, que os fogos nesse mercado fossem alvo de reabilitação, caso se destinassem ao arrendamento.
“Se é verdade que o alojamento local veio subir os preços (rendas), não se pode dizer que tenha retirado oferta do arrendamento habitacional, já que simplesmente não era a esse mercado que essa oferta se dirigia”, comenta. Apesar disso, e paradoxalmente, a verdade é que com a pandemia houve mesmo uma forte redução do número de alojamentos activos no mercado, sendo expectável que muitos tenham migrado para o arrendamento. “Ou seja, por motivos travessos, a verdade é que o mercado de alojamento local acabou por ser mesmo uma fonte de provisão de oferta para arrendamento, isso num quadro de quase total ausência de investimento feito de raiz para esse fim”, afirma Ricardo Guimarães.
Susana Peralta argumenta que é necessário fazer “um levantamento sério”, que cruze os dados censitários com aqueles que a Autoridade Tributária deveria fornecer, para perceber em que mercado estão as casas, e se elas estão devolutas ou não, que impostos estão a pagar ou não. “Porque a isenção de impostos também é uma despesa fiscal. E o imobiliário é sempre um stock finito. Nunca nos podemos esquecer disso”, argumenta.
Susana Peralta já se dedicou a estudar uma parte deste tema, quando, em conjunto com Duarte Gonçalves e João Pereira dos Santos, fez uma análise ao impacto do alojamento local na subida dos preços residenciais, no estudo encomendado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), O Mercado Imobiliário em Portugal. A análise centrou-se na proibição lançada pelo município de Lisboa, em Novembro de 2018, em alguns bairros, para estimar o impacto da regulamentação do arrendamento a curto prazo no mercado imobiliário. E a primeira conclusão foi a do efeito contraproducente trazido pelo anúncio da medida. Os proprietários em exercício (na sua maioria, portugueses) apressaram-se a registar propriedades imediatamente antes de a proibição ser efectiva, sem que se encontrasse posteriormente qualquer impacto na evolução dos preços de aluguer da Airbnb.
Verificou-se, isso sim, impacto no imobiliário, pelo menos no curto prazo: houve uma diminuição de 20% no número de casas vendidas, e os preços caíram 9%, no caso dos T0 e T1. O estudo da FFMS centrou-se nos dados pré-pandemia. Mas os mesmos três investigadores juntaram um quarto elemento ao grupo, Mafalda Batalha, e escreveram um novo capítulo, “O vírus que devastou o turismo”, publicado numa revista especializada de economia.
“As conclusões foram as mesmas. Quer quando analisamos o choque legislativo, com os anúncios das suspensões, quer quando analisamos o choque da procura, trazido pela pandemia, verificamos que o alojamento local causa pressão no preço das casas, mas não explica sozinho o aumento dos preços observado em Lisboa. Eles não são mesmo a história completa por detrás do boom do mercado imobiliário”, insiste Peralta. “E não nos podemos esquecer de que este mercado trouxe novas oportunidades a muitos proprietários na cidade. O aumento dos preços foi mau para quem quer entrar na cidade e comprar uma casa, mas foi excelente para quem já lá estava”, recorda Susana Peralta.
Recorrendo ao seu “instinto de economista”, uma vez que ainda não tem dados científicos que o comprovem, acredita que, porventura, tem mais peso a política fiscal que isenta os grandes investidores internacionais. “Afinal, é despesa fiscal que está a subsidiar quem não precisa de apoios!”, lamenta, referindo-se aos dados recolhidos pelo consórcio de jornalistas Investigate Europe, cujo resultado foi divulgado nas páginas do PÚBLICO.
“Acho estranho que tanta gente se preocupe com o alojamento local e com o resto não”, afirma a investigadora. Susana Peralta recorda que o problema da acessibilidade à habitação já não está apenas nos centros históricos das grandes cidades, onde há 15 anos ninguém queria viver. “O problema alastrou-se às áreas metropolitanas e isto mostra que há muito por fazer”, argumenta.
Registos-fantasma continuam a crescer
De acordo com o Registo Nacional de Alojamento Local, a 31 de Dezembro de 2022 existiam 108.523 registos de alojamento local em Portugal, e mais de 70% estão fora dos grandes centros. Aquele número excluiu os Açores e faz a comparação com os 98.989 registados em 31 de Dezembro de 2021. No último ano houve um crescimento de 9,5%, acima da época da pandemia (em que a média de crescimento foi de 4%), mas ainda bastante abaixo da taxa de crescimento de 15% registada em 2019.
A Associação de Alojamento Local de Portugal (ALEP) refere que há unidades de AL em 294 concelhos e 2166 freguesias, dando um especial destaque ao aumento da presença destas unidades nas regiões do interior nos últimos três anos. Os distritos de Vila Real e Portalegre foram os que apresentaram a maior taxa de crescimento (aberturas – encerramentos) em relação ao ano anterior, com 22,3% e 21,5% de aumento no saldo de alojamentos locais entre 31 de Dezembro de 2022 e o último dia de 2021. Se olharmos apenas para as novas aberturas, o Algarve (distrito de Faro) é que garante maior destaque, com 4399 aberturas em 2022, seguido pelo distrito do Porto (2504) e do distrito de Lisboa (1629). Lisboa e Porto, porém, apresentam dados de abertura e crescimento enganadores, já que estão fortemente influenciados pelo anúncio da suspensão de novos registos feito tanto pela cidade de Lisboa como pelo município do Porto – um efeito semelhante ao que foi detectado no estudo da FFMS.
Durante o ano de 2020 e até finais de Novembro de 2021, a cidade de Lisboa estava com um crescimento negativo, isto é, com uma diminuição de registos na actividade de AL. A tendência só se inverteu quando o município anunciou a suspensão de registos em quase toda a cidade de Lisboa. “Como a mesma só teve efeito em Abril de 2022, registou-se um pico de registos logo no Inverno e ainda durante a pandemia, algo que não tem nenhuma relação com a realidade do mercado e da actividade”, diz ao PÚBLICO Eduardo Miranda, presidente da ALEP.
Depois da entrada em vigor da suspensão decretada por Lisboa, os novos registos voltaram à tendência anterior, verificada durante a pandemia, registando uma média de dez novas aberturas por mês.
No Porto houve o mesmo efeito de pico de registos em Outubro de 2022, quando foram registados mais de 775 novos AL, na sequência do anúncio da suspensão. A Assembleia Municipal do Porto votou no dia 10 de Outubro a suspensão temporária de novos registos de alojamento local na freguesia do Bonfim e na União de Freguesias do Centro Histórico.
“Estes picos de Lisboa e Porto são o resultado de corridas quase irracionais aos registos depois do anúncio de medidas de suspensão, e que criam números fictícios, já que transmitem uma ideia que não é realista. Acabam por aumentar o número de registos-fantasma, ou seja, AL que estão registados mas não estão activos”, argumenta Eduardo Miranda.
Várias fontes que acompanham os anúncios activos nas plataformas atestam que o número de alojamentos locais activos é significativamente inferior ao número de registos do RNAL. Uma pesquisa na plataforma AirDNA, que faz recolha de dados sobre este sector em todo o mundo, demonstra que o número de AL activos em Lisboa em Janeiro soma 11.628 – para serem considerados activos precisam de ter tido pelo menos uma reserva no último mês. A renda média é de 108 euros.
No Porto, a AirDNA refere existirem 7694 alojamentos activos e que a renda média é de 86 euros. Ricardo Guimarães, da Confidencial Imobiliário, reafirma que o mercado de alojamento local tem uma dimensão muito menor do que a que é geralmente aceite. Olhando para o número de fogos registados no Turismo de Portugal, identificam-se cerca de 20 mil alojamentos em Lisboa e 10 mil no Porto. Este volume contrasta com os cerca de 7500 alojamentos que estarão efectivamente activos em Lisboa e os 5 mil no Porto”, afirma o responsável pela empresa de estatística. “Estamos ainda a fazer o apuramento final, mas os nossos dados provisórios apontam para esta dimensão do mercado.”
Eduardo Miranda estima que 35% a 40% dos registos de AL em Lisboa e Porto não estejam activos; por isso, defende que “encontrar uma forma de actualizar e limpar os registos-fantasma em Lisboa e Porto deveria ser a primeira prioridade para qualquer debate sério sobre o alojamento local nestas cidades”. Eduardo Miranda diz que há “uma obsessão” em responsabilizar o alojamento local pela subida dos preços dos imobiliários, quando de há três anos a esta parte que este segmento de mercado não deveria ser responsabilizado por essa pressão.
“Veja-se a cidade de Lisboa. O número de AL diminuiu consideravelmente na pandemia, os novos registos estão encerrados na zona central de Lisboa desde 2018 e agora em quase toda a cidade. A verdade é que os preços continuam a subir, mesmo sem o AL”, exemplifica o presidente da ALEP.
Eduardo Miranda diz que os problemas históricos e estruturais da política de habitação – ou da falta dela – têm conduzido “a uma necessidade política de encontrar soluções fáceis e culpados visíveis”.
“O alojamento local tem sido o elo mais fraco, em que é fácil jogar as culpas e ameaçar com medidas e suspensões para dar a impressão de que se vai resolver algo rápido, o que é mentira”, diz Eduardo Miranda. A ALEP, recorda o presidente, sempre esteve disponível para ajudar a encontrar equilíbrios nos bairros históricos e negociar regulamentos e áreas de contenção. “Mas todos sabem que não é nestes bairros que está o verdadeiro problema ou a solução da habitação nestas cidades”, refere Eduardo Miranda.