Uma manhã a namorar com aguardentes para vinho do Porto

Qual é o perfil ideal de uma aguardente para Porto? A que deve cheirar? E que sabores deve ter? André Pimentel Barbosa, da Poças, explica-nos (quase) tudo.

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Caves Poças - Prova de aguardentes com o enólogo André Barbosa anna costa

Cheirar e provar vinhos do Porto é bonito e desafiante porque estamos sempre a descobrir aromas e sabores diferentes (destaque para Vintage, LBV e Colheita), resultantes de anos climáticos irrepetíveis. Já cheirar e provar os componentes do vinho em fase de construção é outra coisa. Pode não ser um exercício tão prazeroso, mas é determinante para se perceber o produto final, as virtudes, os eventuais defeitos e a sua evolução no tempo. No caso do Vinho do Porto, por melhor que seja a matéria-prima - uvas - e por melhor que tenha ocorrido o arranque da fermentação em lagar, se a aguardente que vai interromper este processo não for de qualidade - de muito boa qualidade -, teremos o caldo entornado. Teremos um vinho desequilibrado.

Como se sabe, a linguagem de prova muda com o tempo. Noutras alturas, avaliar um Porto Vintage implicava alguma dissertação sobre o “casamento” da aguardente com o vinho. E isto porque, em muitos casos, sentia-se a fruta do vinho para um lado e os aromas da aguardente para o outro, situação indesejável porque o que se pretende é a harmonia do conjunto.

Sucede que a partir das colheitas de Porto Vintage de 2000 esses desequilíbrios começaram a atenuar-se, de tal forma que, hoje, um provador quase se esquece dos 20% de aguardente que estão no copo. E se é certo que a qualidade das uvas tem vindo a melhorar a olhos vistos nas últimas décadas, a generalidade dos produtores atribui a melhoria da qualidade dos vinhos do Porto à evolução considerável das aguardentes usadas. E a questão é esta: o que é uma aguardente de boa qualidade para vinho do Porto? Qual será o seu perfil? Deve ser aromática ou não? Deve ter sabor ou ser neutra?

Em Março do ano passado, estava André Pimentel Barbosa a explicar-nos como se preparava um sável fumado nas instalações da Poças quando o assunto da qualidade das aguardentes veio à baila. Como gostamos de meter o nariz em tudo, desafiámo-lo a organizar uma prova de aguardentes. Previdente, o enólogo avisou-nos que o exercício seria “pesado”. Melhor não poderia ter dito.

De maneira que numa destas manhãs de Janeiro lá nos apresentámos em Gaia, com vontade, mas com um ligeiro receio. Em que estado ficaríamos depois de cheirar e provar dez aguardentes? Alegres? Zonzos? Enjoados? Arrependidos? Como ficaria o nariz? E a boca? E a língua? E os dentes? Mas mal nos sentámos à mesa recebemos a boa notícia: a aguardente para este tipo de prova vem diluída – é uma parte de aguardente e duas de água. Ufa!

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Ainda assim, quando André nos viu meter o nariz abrutalhadamente no primeiro copo avisou de imediato: “Atenção que a abordagem tem de ser delicada, suave, sem grandes agitações e repetições. Como teremos de cheirar e provar várias vezes (à medida que progredimos temos necessidade de regressar aos copos anteriores), a ideia é estarmos a namorar tranquilamente as aguardentes. É assim que funciona.” Lição aprendida.

Em prova estavam aguardentes vínicas e vitícolas, sendo que duas eram biológicas. Nove espanholas e uma portuguesa. O exercício consistiu, numa primeira fase, em cheirar todos os copos e tomar notas. Que aromas imediatos libertavam sem agitação e, depois, com agitação? Aromas limpos ou sujos? Neutros, delicados ou impositivos? Haveria predominância vincada de um aroma ou não? Depois, na boca, foi fundamental percebermos se existia harmonia de sabores com a prova aromática (por vezes as coisas divergem). E, acima de tudo, tivemos de avaliar se a aguardente era fresca ou pesada e se deixava ou não sabores desagradáveis da boca.

O nosso cérebro registou aromas de zimbro, eucalipto, mentol, rosas, mas também de sabão, lenhas e outras coisas menos agradáveis, tudo com intensidades diferentes. Em matéria de sabores, umas aguardentes eram explosivas e outras com notas doces ou amargas, umas frescas e outras com demasiado impacto, umas com notas cítricas e outras com toque fumado e, ainda, uma que sabia a amendoins.

Agora, perante esta profusão de aromas e sabores, qual seria a melhor ou as melhores aguardentes para o vinho do Porto? A resposta é à galega: depende. Depende do perfil de cada casa (a riqueza do vinho do Porto), dos posicionamentos das marcas de cada casa, da matéria-prima que o enólogo tem no momento do corte (bloqueio da fermentação), do próprio perfil do enólogo e dos momentos de utilização da aguardente (no corte da fermentação ou no refrescamento de vinhos velhos). A equação é complexa.

No caso da Poças, a tese de André Barbosa é bastante simples: “Como eu quero que os nossos Vintage e LBV revelem a pureza da fruta, opto por uma aguardente o mais neutra possível, sem qualquer aroma ou sabor em destaque, mas que seja – isso é muito importante – fresca na boca e constante, sem oscilações. A aguardente é muito importante, mas o que eu quero é que não se dê por ela.” E, entre as dez aguardentes em prova (nove espanholas e uma portuguesa), a preferência de André foi a aguardente da Destildouro, seguida de duas outras espanholas. As restantes não encaixariam no perfil dos vinhos da Poças para Vintage ou LBV.

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A "abordagem tem de ser delicada, suave" anna costa

Atendendo a que uma ou outra aguardente revelavam, por si, alguns aromas que encontramos em certos Vintage, perguntamos ao enólogo se há quem use certas aguardentes para melhorar o perfil dos vinhos. Diplomata, André responde que “poderá acontecer, cada casa escolhe o perfil de aguardente que mais lhe convém. A liberdade é total e o conjunto das aguardentes autorizadas pelo IVDP é vasto”, com o preço por litro a oscilar entre 2€ e 3€.

No regresso a Lisboa - de comboio e por razões óbvias - vêm-nos à memória alguns Vintage provados nos últimos anos, com notas de zimbro (quase todos do Vale de Mendiz), de mentol ou eucalipto e instala-se a pergunta: tais aromas serão das uvas ou das aguardentes? Não sabemos, mas achamos curioso. De facto, o vinho do Porto é um mundo complexo, cheio de histórias e em que a aguardente é, injustamente, um assunto que raramente merece tratamento ao nível da crítica ou da avaliação dos consumidores. É pena. Mas talvez seja esse o fascínio do vinho do Porto: quanto mais esmiuçamos este vinho, mais queremos conhecê-lo, prová-lo e partilhá-lo. Nem sempre damos conta da sorte que temos.

P.S. No seguimento desta prova fizemos um curioso exercício de refrescamento de um Tawny 10 anos com duas aguardentes diferentes. Pode ler a história no projecto Terroir

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