A Festa das Fogaceiras tem aroma a pão doce, toque de tricot e brilhos nocturnos
A festa-mor de Santa Maria da Feira é para todos os sentidos. O ponto alto é o dia 20, mas antes e depois há outras propostas culturais que, através da fogaça, agradecem a protecção de São Sebastião.
Da passagem da Peste Negra por Santa Maria da Feira é melhor não falarmos muito porque, além de ter dizimado famílias inteiras na Idade Média, a doença implicava sintomas como gânglios inchados quase a rebentar e manchas cada vez mais roxas à medida que pele e carne iam morrendo. O desespero era tanto que em 1505 houve que prometer a São Sebastião uma fogaça por cada ano de sobrevivência familiar e o santo que nem sequer é o padroeiro local foi cumprindo a sua parte enquanto esse pão doce particularmente rico e nutritivo lhe foi entregue para bênção, antes de ser repartido pelos mais pobres do povoado.
É certo que, a dada altura, o povo deixou de se preocupar com a promessa e falhou em entregar ao mártir o voto que lhe era devido, mas, como o santo não se coibiu de castigar-lhes o esquecimento com mais um surto bubónico e outra razia mortífera, a população percebeu que era melhor andar na linha e voltou a fazer o que lhe competia a cada 20 de Janeiro, mantendo-se cumpridora desde então, há uns quantos séculos consecutivos.
É por isso que, na próxima sexta-feira, 20 de Janeiro, Santa Maria da Feira mal se vai lembrar da peste, antes celebrando saúde e outras alegrias numa festa cujo ponto alto é a procissão com 260 meninas que, trajando de branco pelas ruas, transportam à cabeça as fogaças para São Sebastião, exibindo assim, em plena vista de todos, a iguaria que há centenas de anos vem salvando vidas e consolando dias.
Quem já conhece a festa sabe que as fogaceiras se vestem sempre de branco bem cintado por faixas de cetim em cores vivas relacionadas com os símbolos do município, mas a homogeneidade do traje vinha sendo quebrada por casacos díspares, mais maçudos e informais do que o exigido pela sobriedade da cerimónia. Tantos e tantos anos foram os kispos de penas e boleros de lantejoulas a distrair atenções que em 2022 a Câmara Municipal lançou um apelo público a quem soubesse fazer tricot e assim reuniu uma equipa de 55 senhoras que, em poucos meses, confeccionaram 85 discretos casaquinhos de lã para as meninas mais pequenas destas e próximas edições do evento.
Esse é, portanto, um dos detalhes que em 2023 mais se irá destacar no cortejo cívico matinal e na procissão da tarde da Festa das Fogaceiras, não pelo design ou sentido de moda do modelo adoptado, mas pelo que cada casaco reflecte de trabalho comunitário por dedicadas voluntárias de vários concelhos da região e até de municípios onde, a maior distância, também há carinho pela história de Santa Maria da Feira.
Num incentivo a esse mesmo espírito de partilha, um pouco por toda a cidade há agora elementos a lembrar a aproximação da festa: a rotunda do Hospital de São Sebastião está este ano decorada pela réplica escultórica de uma fogaça entretecida que à noite se ilumina nos tons da real massa de farinha e ovos; várias ruas apresentam cartazes oficiais do evento com cinco irmãs que já desfilam nos cortejos oficiais ou estão ansiosas por ter idade para isso; e outros locais expõem o programa alargado da festa, que integra propostas como um concurso de desenho durante a procissão e um concerto dos UHF com 200 músicos das quatro bandas filarmónicas do concelho.
Entretanto, também os espaços museológicos do município estão focados na mística do voto fogaceiro: o Museu dos Loios tem actividades especiais para famílias em torno da tradição local, o Museu do Papel assinala a festa com um concerto de Rita Vian e o Museu de Lamas aborda o tema em oficinas plásticas e visitas orientadas que evocam São Sebastião, na perspectiva do “Voto, Identidade e Arte”.
A programação abrange até a natureza, porque, na ecovia do rio Cáster, entre o prado no sopé da Mata das Guimbras e a Escola Fernando Pessoa, há a partir do dia 19 uma exposição de fotografia em que Jorge Sarmento revela a Biodiversidade Urbana de Santa Maria da Feira, mostrando como certas espécies de fauna e flora ajustaram os seus habitats a parques, estruturas edificadas e outros espaços com forte presença humana.
Propostas visuais, auditivas e tácteis não irão, contudo, sobrepor-se à experiência olfactiva e gustativa que é a iguaria-rainha da terra. Por estes dias, honrar São Sebastião e celebrar a história local implica obrigatoriamente comer fogaça e, seja no centro histórico da cidade ou nas restantes freguesias do município, não faltam casas onde encontrar exemplares de boa confecção.
A justificar o estatuto de Santa Maria da Feira como Cidade Criativa da UNESCO no âmbito da Gastronomia, pelas mesas do território dispõem-se ainda receitas como extra-mini-fogaça com alheira, javali assado com castanhas em fogaça, tiramisu desse pão, pudim da mesma base e até fogaça-bomboca, mas a versão mais autêntica e genuína é a simples.
Cortada à mão, num circuito circular a partir de quatro pontas imitando os coruchéus das torres do Castelo da Feira, a fogaça é boa quando acompanhada apenas por chá ou vinho do Porto, sabe bem quando está quentinha e com manteiga, agrada quando fria a contrastar com presunto ou queijo da serra, e cada vez mais se come também na versão pequena, com pepitas de chocolate. O que interessa é que haja sempre saúde para a comer e partilhar. É verdade que não há nisso sacrifício nenhum, como seria requisito de qualquer promessa religiosa que se preze, mas São Sebastião também disso nos perdoará. Na sua contínua vigilância, confiará que aprendemos bem a lição.