O Pai Natal pode ser português, mas o Ano Novo é brasileiro
As tradições natalinas caem com alguma dificuldade no verão do Brasil, mas os costumes do Réveillon parecem ter sido feitos para o trópico.
O primeiro sinal de que ele estava chegando foi de fumaça. De cara, fiquei um pouco preocupada: será que havia algum incêndio? Mas ninguém parecia preocupado e, ao chegar mais perto, entendi a razão. A fumaça vinha do carrinho de castanhas — que, no Brasil, adjetivamos (corretamente, pelo visto) como “portuguesas”. Foi assim que me dei conta de que logo mais seria Natal e que, pela segunda vez na minha vida, ele viria com o frio.
Cá as pessoas não devem se dar conta, mas a geografia nos mostra o óbvio: no Brasil (e em todo o Hemisfério Sul), o Natal cai em pleno verão. O que não é tão óbvio é como conseguimos conciliar um Papai Noel de roupas de veludo vermelhas com uma temperatura que pode chegar aos 40 graus. Alguém pode dizer que é simples: afinal, Pai Natal, como dizem aqui, é um personagem fictício, não passa calor. Mais difícil, porém, é explicar o peru, a rabanada e outras comidas capazes de sustentar um urso em hibernação sob um calor escaldante.
Há quem tente escapar. Uns anos atrás, um centro comercial carioca colocou o simpático e rotundo velhinho sobre uma bicicleta, de bermuda e regata (será que aqui se chama camisola sem mangas?). Foi até uma tentativa simpática, mas resultou, convenhamos, em uma reafirmação estética do veludo vermelho. Até porque, de resto, o bom velhinho não conseguiu se livrar do gorro nada adequado ao clima tropical.
Nas ceias, algumas famílias evitam o peru apenas para cair no pernil com farofa, no leitão à pururuca, no tender ou no bacalhau — esta talvez a opção mais leve até aqui. Outros tropicalizam a rabanada com uma bola de sorvete. No limite, há quem sirva uma bandeja exuberante de frutas — para descobrir que todo mundo está mesmo à espera do pavê (e do tio que fará a piada infame do “é pavê ou pacumê?” de todos os anos).
Neste domingo, 25, após uma ceia europeia, acho que posso dizer com segurança que o Natal não é coisa nossa. Para além do menu, é muito mais agradável estar numa sala cheia de pessoas quando lá fora faz 9 graus. Nessa tradição, vocês vencem de longe. Mas, no próximo domingo, 1° de janeiro, algo me diz que estarei com uma imensa saudade do Brasil e, especialmente, do Rio.
Se a estética do Natal é glacial, a imagem do Réveillon, ao menos para mim, é tropical.
Dei-me conta disso quando esperei a chegada de 2010 em Paris. O destino tão fantástico elevou minhas expectativas sobre a festa. Tive um jantar délicieux, é verdade. A vista do Sacré Couer é indiscutivelmente linda. Mas, tão logo deu meia-noite, à explosão de alegria regada a champanhe seguiu-se uma agitação estranha. Em poucos minutos, a multidão havia sumido pelo metro, satisfeita de ter cumprido a missão de ver o ano nascer, ansiosa por um lugar quentinho, possivelmente a cama mesmo.
Nada mais diferente do Brasil — e, toda vez que faço uma generalização sobre um país de mais de 200 milhões, dou-me conta de quantas peculiaridades estou a ignorar. A diferença começa nas roupas: impossível ver uma horda de pessoas de branco no inverno feroz. O frio é um obstáculo à tradição de usar branco para atrair paz.
Dificulta também outra superstição típica: pular sete ondas logo após a meia-noite. Já ouvi de portugueses que mantêm o costume de dar um mergulho na virada, no Algarve. Parece-me que, pela coragem, merecem em dobro todos os pedidos para o ano que acaba de nascer.
E, se na primeira crônica fiz um elogio ao pôr do sol a oeste que encontrei em Portugal, neste texto faço justiça à beleza do nosso nascer do sol a leste. É especial ver o amanhecer do novo ano no mar. E antes que me digam que é possível fazer isso todo dia, é bom lembrar que, no verão brasileiro, o sol nasce por volta de 5h, o que dificulta um pouco, mesmo para quem é matutino como eu.
No Natal, a comida é a grande estrela da festa — que o diga o bolo rei, que lá substituímos por panetones incrementados de mil maneiras. Mas, no Réveillon, o foco está menos na mesa e mais no horizonte que se avizinha. O verão faz do Natal no Brasil uma prova de resistência para uma tradição importada, mas torna o Ano Novo uma celebração do que o Brasil tem de melhor: 7300 quilômetros de litoral.
Que me desculpem os portugueses. O Natal pode ser vosso. Mas o Ano Novo é todo nosso.
Um feliz 2023 a todos, cá e lá! Com mais espaço para olharmos o que há de bom em qualquer canto do Atlântico!
A autora escreve em português do Brasil