Histórias de roupa e de quem a veste: trocar é o verbo que importa conjugar

O valor da roupa está na sua composição, corte e acabamento mas está sobretudo, na história que carrega e na relação que constrói com quem a usa.

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Temos mais roupa do que aquela que conseguimos — ou queremos — vestir the blowup/Unsplash

Quando comecei a escrever estes artigos estava longe de imaginar que tão rapidamente a moda sustentável se tornasse o centro da minha vida. Há dias, explicava o que faço a alguém que não me conhece e que, de imediato, sentiu a paixão na voz quando comecei a falar sobre a forma como a moda pode ser muito mais do que aquilo que aparenta.

Todos temos de andar vestidos mas acontece muitas vezes o rei ir nú e ninguém ter a coragem de o dizer. Aplica-se a todos os domínios da vida e a metáfora também ultrapassa, em muito, a questão da roupa. É contudo, uma forma muito interessante de nos mostrar como aquilo que vestimos apenas interessa a uma pessoa: cada um de nós.

Além de peças de roupa, colecciono histórias sobre roupa e, desta vez, a história mistura dois conceitos diferentes, ambos muito ricos: a troca e o que entendemos por acumulação que pode ser, tão simplesmente, uma paixão.

Há uns anos tive uma ideia para organizar um evento de troca de roupa. Imaginei o nome e convidei uma equipa para, tão rapidamente quanto me surgiu a ideia, outros compromissos se sobreporem e deixar a ideia morrer. Era simples e replicava algo muito comum em Inglaterra: pessoas que se juntam para trocar roupa que já não vestem.

Anos mais tarde recebi um convite para um evento de moda. Chamava-se Mind the Switch e assumia-se como um evento de trocas de roupa. Sorri e abracei-o, promovendo-o o mais possível. Como muitas iniciativas em Portugal, o Mind the Switch interrompeu a sua actividade sem data para voltar mas a chama continua viva.

Tive a ideia de gravar conversas no evento para as transformar num podcast sobre moda sustentável. Hoje partilho essas conversas, às quais entretanto juntei outras, porque quero muito compreender a composição do guarda-roupa de cada um de nós. Apaixonam-me as histórias de roupa e de quem a veste, e já encontrei um padrão entre quem tem este tipo de paixão, e actualmente, também, a preocupação.

O que (não) é um guarda-roupa sustentável

No que toca a sustentabilidade, estamos todos — mais todas porque somos mais mulheres a demonstrar esta preocupação —, no mesmo barco. Queremos fazer mais e melhor, nem sempre temos ou sabemos como. E está tudo certo porque precisamos de cada vez mais pessoas conscientes de que é urgente fazer alguma coisa, contrariando o consumismo que tão bem caracteriza a nossa sociedade.

Vivemos uma cultura de usar e deitar fora, comprar para substituir, que não considera outras opções. Para quem, como eu, cresceu num infindável mundo de opções e cores, é muito fácil esquecer que antes não era assim e que a roupa tinha (outro) valor. Hoje, o valor já não é moeda de troca, trocado por uma desvalorização daquilo que se entende por valorização. Confuso?

O valor da roupa está na sua composição, corte e acabamento mas está sobretudo, na história que carrega e na relação que constrói com quem a usa. Essa relação vem-se perdendo, a favor da satisfação instantânea e da rápida substituição.

Também na moda existe o fenómeno da obsolescência programada, numa rotação de tendências imposta pelas marcas, que não dá tempo à roupa para respirar. O que é tendência hoje já não serve amanhã, levando a uma acumulação de tendências - e peças de roupa - no armário de cada um, seguido de um descarte constante para acolher novas peças de roupa.

Esse descarte tem de ir para algum lado e a caridade não absorve tudo o que os outros já não querem, levando a que muitas peças de roupa em perfeito bom estado acabem amontoadas algures no deserto, prontas para incineração.

Os números não mentem

Temos mais roupa do que aquela que conseguimos — ou queremos — vestir e usamos cada vez menos vezes as peças de roupa que temos no roupeiro.

Dos 100 mil milhões de peças de roupa produzidas anualmente, 92 mil toneladas acabam em aterros, num processo crescente ao longo dos últimos anos porque as peças de roupa são usadas entre sete a dez vezes antes de serem descartadas, o que representa uma diminuição drástica, nos últimos 15 anos, do número de vezes que vestimos a mesma peça de roupa.

Simultaneamente, as marcas de fast fashion produzem mais. Nos últimos 20 anos duplicaram o número de peças colocadas no mercado em cada ano.

Se temos mais opções e mais peças de roupa e se as vestimos cada vez menos, isso quer dizer que a roupa irá parar a algum lado. O aumento da população mundial não acompanha este crescimento exponencial da roupa disponível. Só nos EUA, por exemplo, 85% de todos os têxteis produzidos, ou seja, mais de 11 milhões de toneladas de têxteis por ano, são lixo que acaba nos aterros. Contas feitas, são mais ou menos 37 quilos de têxteis por pessoa, ou mais de duas peças de roupa por segundo em cada país. E esperamos que o Planeta aguente?

Incinerar dói

Achamos que descartamos e desaparece, que incineramos e se reduz a pó mas, na verdade, não é assim. Na Europa, a roupa contribui cerca de 10% do impacto ambiental e representa boa parte do padrão de consumo insustentável que caracteriza os países mais desenvolvidos.

É também nestes países que aliviamos a culpa do excesso de consumo através de doações, entregando a outros aquilo que já não queremos. Por vezes, aquilo que nunca quisemos mas que, afinal, comprámos, nunca usámos e que enviamos para a caridade, convencidos de que estamos a ajudar.

Lamento desapontar-vos mas não estamos a ser grande ajuda porque há mais roupa do que pessoas a quem doar e apenas 30% da roupa enviada para este tipo de organização acaba por ser reutilizada. O resto vai para aterros e apenas 0,1% é reciclado.

A incineração tem sido a solução encontrada para evitar que os têxteis se acumulem nos aterros mas este processo tem efeitos muito negativos: a incineração liberta dióxido de carbono, metano e outros gases efeito de estufa que diminuem drasticamente a qualidade do ar e contribuem para a emergência climática que estamos a viver.

Além destes gases, a incineração liberta toxinas presentes nas tintas usadas para tingir a roupa (não, o algodão não cresce em várias cores…) que se espalham pela atmosfera. Boa parte destas toxinas, resultantes dos solventes usados nos processos de tingimento, são cancerígenos e se há coisa que sabemos é que o ar dissipa-se e chega a todo o lado.

Vou evitar a perspectiva catastrófica, mas deixar têxteis em aterros também não é boa ideia porque, apesar de demorarem muito — muito! — tempo no seu processo de decomposição, mesmo não se tratando de fibras compostáveis, as fibras — ou parte delas — acabam por ser absorvidas pela terra, infiltrando-se nos lençóis freáticos e contaminando a água que usamos para… beber.

Soluções precisam-se

Há muito que podemos fazer a nível individual, social e político. Para uns, o caminho é tornar-se activista pelo clima ou sustentabilidade, outros usam os seus perfis sociais para serem influenciadores digitais. Contudo, todos podemos fazer alguma coisa porque o mais importante está na acção individual associada à decisão de querer mudar. Ideias?

Integrar uma comunidade para ter ideias e apoio, bem como informação e motivação para mudar. Fazer parte de uma comunidade, mesmo que virtual, liga-nos a outras pessoas, apoia-nos e inspira. Dá ideias e suporta as nossas decisões que passam a ser mais conscientes e informadas.

Conhecer e apoiar marcas sustentáveis, pois além de promoverem os seus produtos têm, muitas vezes, uma estratégia de educação do consumidor que nos informa e ajuda a conhecer melhor a indústria da moda.

Simplificar e cuidar a roupa que já temos, bem como a forma como organizamos o nosso guarda-roupa, escolhendo o que realmente se enquadra no nosso estilo para, todos os dias, usarmos a roupa que temos, a mesma que cuidadosamente arejamos e lavamos apenas quando necessita ser lavada.

Quando compramos, escolher menos e melhor, com fibras naturais ou eco-friendly, cortes clássicos e duráveis, cores que não se transformam com as lavagens e perduram no tempo.

Usar e abusar das trocas de roupa, das lojas de roupa em segunda mão, e da reinvenção de peças de roupa, transformando vestidos em saias ou calças em calções, por exemplo.

E no futuro

Bem-vindos ao futuro no qual não compramos, apenas trocamos aquilo que já não usamos. Poderia ser um bom slogan para uma campanha de greenwashing da fast fashion mas é apenas uma forma de introduzir a ideia de que passar roupa entre primos e irmãos voltou a ser cool - na verdade nunca deixou de o ser - e de que comprar o que não precisamos é cada vez mais uncool, tal como os unboxing bacoucos ou os hauls que a fast fashion mais aguerrida tanto promove.

As histórias de roupa que tenho para contar incluem sempre a tomada de consciência em relação ao futuro e ao que nos espera, numa tentativa de fazer parte da solução, atacando o problema.

De todas as mulheres que entrevistei, já descobri uma que tem um guarda-roupa com oito peças de roupa — não me enganei, são mesmo oito —, e conversei com outra que está no extremo oposto, porque tem um quarto para guardar todas as peças de roupa que acumulou ao longo da vida, sem comprar.

Apesar de saber que a última compra que fez foi um pijama de uma marca de fast fashion (viajou, esqueceu-se de levar um pijama e não encontrou outra solução), na verdade não se recorda da última compra que fez. Vive com a roupa que tem e a que, por força da profissão, lhe oferecem, bem como da que vai recebendo em trocas que faz com amigos e conhecidos. Compras só mesmo em lojas de segunda mão e apenas peças que sejam paixão.

Outras pessoas, que não estão ligadas à moda, começam a ter o mesmo comportamento, trocando entre amigas, emprestando e usando colectivamente peças de roupa e acessórios, com o objectivo de evitar comprar. Porque todos sabemos que comprar resulta inevitavelmente em acumular e acumular é também, quase sempre, sinónimo de descartar. A frase que precisamos hoje é simples: Vamos trocar?

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