Dez passos para conseguir ter um guarda-fatos sustentável

Dez comportamentos ou estratégias que podem nos ajudar a usar roupas de forma mais responsável.

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“A moda tem uma componente aditiva porque a compra de roupas provoca a libertação de dopamina”, diz uma investigadora GettyImages

Esta lista não é tanto sobre os objectos necessários para ter um guarda-fatos sustentável. É mais sobre a relação que nós, consumidores bombardeados por campanhas de marketing, estabelecemos com os produtos e a própria indústria da moda. E é por isso que começamos pelo autoconhecimento - o que nos impele a comprar mais e mais coisas das quais não precisamos? O PÚBLICO conversou com pessoas ligadas à sustentabilidade e ao sector do vestuário para identificar dez comportamentos ou estratégias que nos nos podem ajudar a usar roupas de forma mais responsável.

Conhecer-se a si próprio

As decisões que tomamos quando consumimos são influenciadas por uma interacção complexa de factores económicos, culturais, tecnológicos e… neurológicos. “A moda tem uma componente aditiva porque a compra de roupas provoca a libertação de dopamina”, diz ao PÚBLICO Salomé Areias, investigadora do programa de doutoramento do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (Cense), na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

Na sua investigação, Salomé Areias procura compreender como a cabeça do consumidor funciona e de que modo a indústria tira partido das flutuações neuroquímicas. Os ciclos rápidos das colecções, impulsionados por campanhas de marketing, induzem o consumidor a comprar mais e mais. E tocam com frequência na corda sensível das emoções. É o caso do medo: 50% de descontos só esta sexta-feira, restam poucas unidades, edição limitada. São palavras que convocam decisões rápidas e nos tentam convencer de que se trata de um excelente negócio.

“Não faço qualquer julgamento do consumidor que compra impulsiva ou compulsivamente, há vários estudos que mostram como há uma manipulação forte no marketing de moda”, afirma a investigadora, que é também coordenadora da associação de moda sustentável Fashion Revolution Portugal.

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James Leynse / GettyImages

Com a oferta de roupas cada vez mais baratas (e, muitas vezes, de pior qualidade), tanto em lojas físicas como virtuais, tornou-se cada vez mais simples obter a sensação prazer proporcionada pela aquisição de um novo objecto. Um relatório da Greenpeace mostra, por exemplo, como após a euforia do consumo vem a insatisfação do acúmulo, da inutilidade ou da dívida. São ambivalências emocionais que fazem muitos consumidores correrem como ratinhos numa roda que que, de resto, nunca acaba por trazer a sensação de plenitude.

“Todos nós, humanos, temos necessidades vitais, precisamos de validação, afecto, estatuto, pertencimento, conexão, espiritualidade. Buscamos muitas vezes na roupa uma satisfação, viabilizada pela dopamina, capaz de preencher as nossas faltas. Daí ser tão importante percebermos o que de facto buscamos preencher quando compramos roupa impulsivamente”, afirma Salomé Areias.

Sabia que...

Só em Portugal continental, foram descartadas 5043 mil toneladas de têxteis em 2021, referem os dados da Agência Portuguesa para o Ambiente.

Precisamente porque a aquisição de roupas envolve aspectos emocionais e bioquímicos, a investigadora afirma que o primeiro passo em direcção a um consumo sustentável é compreender as razões que nos levam a adquirir produtos impulsiva e compulsivamente. Este caminho pode ser feito, segundo a investigadora, através de um olhar para dentro, facilitado por abordagens como a meditação, a psicanálise ou a psicoterapia.

“A roupa é muitas vezes uma solução desadequada e efémera para um problema existencial (societal) mais profundo do que pensamos”, conclui.

Fazer listas

Uma solução possível para evitar a compra impulsiva de peças supérfluas, e que podem até nem sequer ser usadas, é fazer uma lista consciente daquilo que precisamos. “Enumero as coisas que desejo e deixo a lista ali à espera do momento certo, de uma oportunidade. Se quero um macacão de ganga, por exemplo, tenho isso em mente quando vou a um mercado de troca”, afirma a criadora de conteúdos Patrícia dos Reis, autora da página Reutilizaramente.

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GettyImages

Salomé Areias sublinha ainda a importância de ir ao shopping “quando se está bem”. “Comprar roupa é como ir ao supermercado com fome”, compara a investigadora. Se estivermos “com tédio, frágeis ou deprimidos”, estaremos mais propensos a comprar coisas que não constavam da lista de que falámos acima.

Apostar em peças que combinem entre si: o armário “cápsula"

O simples acto de elaborar uma lista pode ser um desafio para muitos consumidores. E, mesmo que este pequeno inventário seja elaborado com sucesso, não há garantias de que as peças escolhidas (e desejadas) dialoguem entre si e permitam diferentes combinações. Daí que muitos profissionais façam o elogio do guarda-fatos tipo “cápsula”, que articula poucas peças, mas boas e atemporais.

“Um armário cápsula baseia-se em peças atemporais, neutras, essenciais, de qualidade e versáteis. Isto significa dizer que essas as peças serão usadas em várias composições diferentes, necessitando de menos peças para compor vários looks. Estas terão maior durabilidade e estarão sempre actuais, sem necessidade de renovar o armário a cada troca de estação”, explica a consultora de moda Priscila Rodrigues.

Desacelerar o consumo e a produção

Compramos e acumulamos muito mais roupas do que realmente precisamos. As lojas de fast fashion vendem produtos baratos que, no curto ciclo de vida das roupas, vão parar aos aterros sanitários. Só em Portugal continental, foram descartadas 5043 mil toneladas de têxteis em 2021, referem os dados da Agência Portuguesa para o Ambiente.

As próprias lojas de roupa em segunda mão já têm dificuldade em absorver o fluxo de produtos rejeitados pelos primeiros donos. Não só pela quantidade, mas também pela má qualidade. “As roupas hoje têm pouca durabilidade, fazem furinhos, criam borbotos, perdem rapidamente a estrutura - precisamos que as marcas sejam responsabilizadas”, afirma Susana Fonseca, membro da direcção da Zero.

É por isso que esta associação ambientalista defende seja aplicado aos têxteis o mesmo princípio de responsabilização que já existe hoje para as embalagens de vidro, plástico e metal. Assim, cada peça comprada implicaria o pagamento de um eco-valor, abrindo caminho para que o próprio sistema financie iniciativas de triagem, reutilização, reciclagem e sensibilização.

Um relatório da organização Greenpeace indica que o melhor caminho para a moda sustentável é mesmo a redução. Desacelerar a produção, a venda e o consumo. “A solução mais simples é não produzir, vender e comprar tanto. Há uma necessidade urgente de uma mudança radical no sistema em direcção a um abrandamento da moda de consumo rápido. E ainda de uma suavização da abordagem em larga escala. As empresas têm de introduzir vagar e durabilidade nos seus futuros modelos de negócio”, refere o documento.

Ler as etiquetas

Cuidar bem de uma peça é uma atitude tão ecológica como reutilizá-la. Uma roupa que possui um tecido de qualidade e que, simultaneamente, é lavada e seca segundo as indicações da etiqueta, será provavelmente uma peça que durará mais tempo. Daí também a importância de desacelerar a chamada fast fashion: em vez de vastas colecções de roupas sintéticas, baratas e de qualidade duvidosa, teríamos em alternativa uma oferta mais limitada, mas com tecidos duráveis, bom corte e um preço um pouco mais elevado (reflectindo práticas justas ao longo de toda a cadeia de produção).

“A escolha do tecido é muito importante, pois reflecte directamente a qualidade e a durabilidade da peça. Sempre que possível, prefira peças de fibras de origem natural como o algodão, o linho, a seda e a lã. Se bem cuidadas, terão uma durabilidade muito maior do que as fibras sintéticas. Além de serem muito mais confortáveis e adequadas às diferentes estações”, refere Priscila Rodrigues. A consultora refere ainda que as fibras sintéticas, quando descartadas, não se desintegram com facilidade, persistindo nos solos. A cada lavagem, fragmentos minúsculos destes tecidos artificiais são escoados pela tubagem e contaminam sistemas de água.

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Dan Kitwood /GettyImages

Remendar e transformar

Patrícia dos Reis garante que transformar roupas já se transformou numa tendência. A própria criadora digital mostra como dar uma nova vida a várias peças na sua página. “Precisamos desconstruir a forma como nos ensinaram a usar uma peça de roupa. Fazendo nós ou cortando aqui e ali podemos ter peças completamente diferentes”, afirma a autora da página Reutilizaramente.

Tão importante como transformar é remendar. Tanto Patrícia dos Reis como Salomé Areias defendem que reparar uma peça danificada numa área específica é, de algum modo, atribuir um significado, uma história àquele objecto. “Acredito que um remendo visível até nos liga de uma forma mais forte a uma peça. Existem, inclusivamente, diversos tutoriais de visible mending na internet”, afirma a criadora do Reutilizaramente.

Na sua opinião, está na hora de desmistificar a ideia de que só quem possui uma máquina de costura tem capacidade para reconstruir ou consertar peças de vestuários. Às vezes, bastam dois ou três pontos à mão ou a aplicação de uma flor, uns botões ou um patch. “Quem não tiver ideias só tem de dar uma espreitadela na rede Pinterest, não faltam fontes de inspiração”, garante.

Trocar e comprar usado

Os mercados de trocas têm emergido como espaços onde é possível passar à frente uma peça da qual já não gostamos, ou que já não nos serve, e ao mesmo tempo, trazer para casa outras das quais necessitamos. Iniciativas como o Let's Swap, CircularWear, Troca-te e Mind the Switch promovem trocas e eventos em vários pontos do país. “Curiosamente, as minhas peças favoritas actualmente vieram de um mercado de trocas”, conta Patrícia dos Reis.

Comprar peças usadas é também uma boa opção. Mas Salomé Areias alerta para o facto de o mercado de segunda mão alimentar-se do fluxo ininterrupto de roupas novas. E, assim sendo, pode padecer dos mesmos problemas de excesso e descarte rápido.

Destralhar com cautela

A ideia de esvaziar o guarda-fatos para começar do zero pode ser perigosa, na opinião de Salomé Areias, se não for acompanhada de autoconhecimento. Descartar-se da maioria das peças para começar um novo ciclo de consumo desenfreado é, para a investigadora, apenas perpetuar o problema. Até porque os resíduos resultantes desta operação são muitas vezes tratados como lixo, e não recursos. E a ideia é precisamente que possam ser valorizados e, se possível, ter uma segunda ou terceira oportunidade vestindo outros corpos.

Doar responsavelmente

As doações são uma opção muito comum. A ideia é que este acto de generosidade seja responsável, sugere a investigadora do Cense, ou seja, que os objectos sejam distribuídos por pessoas que os desejam e valorizam. “Precisamos ser mais responsáveis pelo destino das peças que trazemos para casa”, nota Salomé Areias. Encontrar alguém que procure especificamente um par de calças daquele tamanho poderá ser mais frutífero, do ponto de vista ambiental, do que atirar um saco gigantesco de roupa barata para um contentor. Há o alívio do descarte - os objectos desaparecem -, mas não há garantia de que serão reutilizados, reciclados ou valorizados.

Uma forma saudável de encontrar novos donos para os objectos que já não nos são úteis é anunciá-los em grupos de doação. No Facebook, há comunidades destinadas a este fim com alguns milhares de seguidores. Em dois espaços que Raquel Cardoso modera naquela rede social, por exemplo, todos os dias há ofertas de roupas para todas as idades, além de móveis, brinquedos e até alimentos.

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Peter Macdiarmid /GettyImages

“É muito importante a desconstrução do que é caridade, solidariedade, reciclagem, upciclagem”, afirma Raquel Cardoso, moderadora dos grupos Dou-te Se Vieres Buscar (16 mil membros) e Dou-te se Vens Buscar (54 mil). O trabalho desenvolvido nas redes tornou-se tão sólido que foi apresentado na Semana Europeia de Redução de Resíduos.

“Penso que a roupa ou estilo sempre foi uma forma de pertencer a algo, que é uma necessidade social primária do ser humano. Comprar a marca x era (e é) um estatuto, contudo cada um quer ser único neste mundo e, por isso, também as peças de designer exclusivas são mais caras. Mas e que tal sermos os nossos próprios influencers e reaproveitar roupas e influenciar o mundo de uma forma mais positiva?”, questiona Raquel Cardoso.

Além das comunidades em redes sociais, existem aplicações como a Finduse e a Freecycle (esta ainda muito pouco dinâmica em Portugal) que permitem anunciar objectos para doação.

Ser um agente activo de mudança

A busca por um vestuário mais sustentável não se limita ao plano das coisas palpáveis – roupas, embalagens e produtos de limpeza –, estendendo-se à acção, ou seja, a uma participação activa na comunidade onde vivemos ou trabalhamos. Salomé Areias sugere que cada consumidor invista tempo em conhecer melhor os programas eleitorais (e depois vote!), apoiar ou tornar-se membro de organizações dedicadas à transparência e à justiça têxtil e, por fim, exigir mais informações sobre quem fez a roupa, onde e com quais materiais (como advoga a campanha #whatsinmyclothes da Fashion Revolution, por exemplo).