A primeira vez que ouvimos falar do projecto Viti Vini Vici foi pela boca de um enólogo que tem a particularidade de juntar virtudes raras numa só pessoa: competência, seriedade. Ora, como esse enólogo falava de outro enólogo, o Thomaz Vieira da Cruz - que anda nesta vida com mesmos valores (competência, seriedade) -, o seu conselho tornava urgente ler este que é, provavelmente, o melhor livro sobre a cultura do vinho que se escreveu nos últimos anos em Portugal.
Não é um livro fácil de descrever. Tem informação técnica, mas não é um manual académico. Tem muitas pequenas histórias, mas não é a biografia do economista que abandonou tudo para se dedicar ao mundo do vinho. É de leitura fácil, mas vem com uma estrutura de entradas que nos obriga colar post-its por todo o lado, dobrar páginas e rabiscar no espaço disponível nas páginas.
Não é um tratado de humor, mas está carregado de uma ironia peculiar por parte de alguém de que até tem um perfil circunspecto. “Fazer vinho é a coisa mais fácil que há. Basta esmagar as uvas e o vinho faz-se. Básico e instintivo. Não há nada que saber. Como o sexo, qualquer ser vivo nasce ensinado a fazer vinho. Fazer vinho é pelo menos a segunda mais antiga profissão do mundo. Já vinificar, é um acto de amor. (...) Tirando de uma regra três simples, fazer vinho está para sexo como vinificar está para amar”.
Em 452 páginas e 617 entradas temos um manancial de informação de interesse para um enófilo amador, para os enochatos ou para alguém que quer dedicar-se com maior intensidade à vitivinicultura. Questões sobre solos, castas, técnicas de poda, vinificações, higiene, prova, temperaturas, religião, sulfitos, câmaras de provadores, literatura variada, é só pedir que está cá tudo. E tudo com desenvoltura. “Natural é o vinagre, e só o mau. O vinho não é fruto de geração espontânea, é fruto da uva e da acção do homem, ou, se quiserem do género humano”. Ou interrogações como esta: “um vinho vegan poderá, na sua origem – na videira – levar estrume de vaca?” No final da obra temos 22 páginas com a indicação das obras mais importantes que se publicaram em todo o mundo.
Quando perguntamos ao autor por que razão publicou o livro, eis a resposta: “Este é um livro que eu gostaria de ter lido quando, há 30 anos, deixei a economia para me dedicar ao vinho. Naquela altura não havia nada parecido com isto. Nada. E eu senti a falta de uma obra assim. Por outro lado, escrever o livro obrigou-me a praticar um exercício intenso de concentração nos assuntos, algo que é importante para mim”.
E isso é bem verdade, porque o cérebro de Thomaz Vieira da Cruz movimenta-se numa permanente acrobacia irrequieta. Começa a conversa sobre um tema e, segundos depois está a falar de química, de física, de fisiologia das plantas, de vinhos ditos naturais e coisas que podem meter pelo meio uma tese de Alexandre von Humboldt ou uma qualquer passagem bíblica. Minutos depois interromperá o discurso para perguntar “onde que nós íamos mesmo? Ah, pois, por que razão escrevi o livro? Isso é bocadinho como aquele tipo que perguntou ao George Mallory porque é que ele decidiu escalar o Evereste. Adoro a resposta: ‘bom, porque o Evereste estava lá’. Simples. Ora, eu tenho 30 anos de vida profissional e tinha tempo, de maneira que decidi começar a escrever e assim apareceu o livro”.
Este não é um livro que se leia de rajada. Nós, que andamos nesta vida, nem a um quarto do livro chegamos, apesar de andar connosco aos trambolhões em sacos de viagem por estas vinhas e adegas fora, com as nódoas e as amolgadelas consequentes. Talvez o Natal dê uma ajuda.
Quase com 52 anos, Thomaz Vieira da Cruz não é um enólogo badalado, até porque a discrição é a sua imagem de marca. Esteve envolvido em projectos de referência em diferentes regiões do país e anda agora a fazer algumas experiências com enólogos amigos, mas se alguém quiser conhecer vinhos por si criados pode fazê-lo através das marcas Terra Larga ou 5ª de Mahler, no projecto familiar que é a Sociedade Agrícola Areias Gordas.
Em Salvaterra de Magos, Thomaz faz brancos que encantam em qualquer parte do mundo por causa do perfil complexo, disruptivo e longevo desses mesmos vinhos. Assim de repente não nos recordamos de outro enólogo que consiga apresentar hoje um vinho branco de Fernão Pires com 20 anos de vida e em grande forma. Vinhos que, quando nasceram, não foram compreendidos, mas nada disso preocupa o enólogo. Pelo contrário. “Eu até gosto de dizer que os meus vinhos, há 20 anos, não estavam na moda, mas, feitos com Fernão Pires, Arinto ou Trincadeira das Pratas, chegaram a velhos com grande classe”. Ter razão antes do tempo é coisa que acontece a pouca gente.
Informações
Viti Vini Vici é uma edição de autor. Em Lisboa está à venda na livraria Barata. As encomendas podem ser feitas para thomazvieiradacruz@yahoo.com. O livro custa 25 euros.
O autor e a obra podem ser acompanhados nas redes sociais: no Facebook, Instagram ou Twitter.