As crianças têm direitos, mas também deveres

Será que estamos a ajudar as crianças a crescer quando estas não têm consciência dos seus deveres? Que adultos vão ser quando crescerem? Que mundo estamos a criar?

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As crianças "depressa constataram que os direitos e os deveres, nas suas palavras, 'casavam'” Nuno Alexandre/Arquivo

A Carta dos Direitos das Crianças foi uma das grandes invenções da humanidade. E, quando vivemos num contexto em que esses direitos são respeitados, moramos no melhor de dois mundos. Até aqui tudo bem. O único senão é quando valorizamos tanto a infância e os direitos a esta associados que nos esquecemos dos deveres das crianças. E sem deveres não há direitos. Pelo menos, para os outros. Quando achamos que só temos direitos, atropelamos os direitos dos outros. Que, assim, deixam de ter direitos. É que os direitos e os deveres são as duas faces da mesma moeda e estão indissociavelmente ligados.

Foi precisamente esta a descoberta que as crianças de sete anos fizeram quando foram confrontadas com a palavra deveres, cujo significado desconheciam. Com curiosidade, questionaram: o que é isso dos deveres? Explicámos o sentido do vocábulo, concretizando com exemplos práticos, e solicitámos aos alunos que elencassem aquilo que entendiam serem os seus direitos e deveres na sala de aula.

Depois da listagem realizada, depressa constataram que os direitos e os deveres, nas suas palavras, “casavam”. Ou seja, a cada direito correspondia um dever e vice-versa. Tinham, por exemplo, o direito de falar e de ser ouvidos. Mas só era possível exercerem esse direito se os colegas não os interrompessem e respeitassem o dever da escuta. Tinham o direito de ser respeitados, mas tinham o dever de respeitar os outros. Tinham o direito de participar nas atividades escolares, mas tinham o dever de colocar o dedo no ar e esperar a sua vez para falar. Tinham o direito de brincar no recreio, mas tinham o dever de trabalhar na aula. Tinham o direito de ir à casa de banho, mas deviam tentar aguardar pelo intervalo.

Em conjunto, a turma elaborou um cartaz com os seus direitos e respetivos deveres, unidos com uma seta com dois sentidos, que foi afixado na parede da sala de aula, para ser dado a conhecer na reunião de pais. Mas não logo no início. No princípio, o cartaz começou por estar coberto, para só ser partilhado depois de os pais fazerem um exercício semelhante ao dos filhos.

Na reunião, foi solicitado às famílias que, a pares com a mãe ou o pai sentado a seu lado, escrevessem alguns dos que consideravam serem os direitos e os deveres dos filhos em casa. Rapidamente, as parelhas de pais associaram direitos e deveres, fazendo-os corresponder entre si, tal como tinham feito os filhos. De acordo com os pais, as crianças têm o direito de brincar, mas o dever de arrumar os brinquedos. Têm o direito de falar à mesa, mas o dever de ouvir os adultos quando estes falam. Têm o direito de jantar com a família, mas o dever de esperar que todos acabem de comer para que possam levantar-se. Têm o direito de ter as suas necessidades garantidas, mas o dever de colaborar em pequenas tarefas domésticas, como pôr a mesa ou ajudar a colocar a loiça na máquina.

Do elencar destes direitos e deveres surgiu a partilha quanto à dificuldade comum em fazer cumprir os deveres, não por falta de insistência das famílias, mas por manifesta resistência das crianças. Na hora de arrumar os brinquedos, nunca apetece ou estão cansadas; no momento de os adultos falarem à mesa, interrompem, querendo a atenção toda para elas; na altura de acabar o jantar, insistem em levantar-se apressadamente, revelando dificuldade em estar sentadas na cadeira; e no instante de colaborar nas tarefas domésticas, argumentam que não gostam de o fazer e tentam adiar a tarefa.

A intenção desta conversa não foi, de modo algum, estabelecer um passa culpas nem tão pouco criticar a ação das famílias ou da escola. Foi apenas a assunção de que partilhávamos problemas comuns e de que nos cabia tentar atuar de forma concertada para consciencializar as crianças da correspondência entre direitos e deveres, bem como quanto à relevância do cumprimento destes últimos.

Também ficaram no ar outras questões, que dariam para muitas reflexões e para muitas reuniões de pais. Será que estamos a ajudar as crianças a crescer quando estas não têm consciência dos seus deveres? Que adultos vão ser quando crescerem? Que mundo estamos a criar? Como fazer para termos uma resposta mais consentânea com as nossas expetativas? Devemos insistir mais? Devemos ser mais assertivos? Devemos tornar-nos mais exigentes? São muitas as questões e todas elas pertinentes. A tomada de consciência representa sempre o primeiro passo para a mudança. É que apenas quando são cumpridos os deveres podemos garantir os direitos de todos, crianças e adultos.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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