Acerca do lugar das crianças no mundo
Se é importante dar atenção às crianças, é relevante não as transformar no centro do mundo, sob pena de não as estarmos a ajudar a crescer nem a preparar para lidarem com a realidade.
As crianças são muito importantes. E têm um lugar muito importante no mundo e, sobretudo, nas suas famílias. Até aqui tudo bem. É positivo que as crianças sejam muito importantes e tenham um lugar muito significativo no mundo e, sobretudo, nas suas famílias. O problema começa quando, de muito importantes, as crianças se transformam no centro do mundo, em redor do qual tudo gira: a família, os adultos e o mundo em geral, pelo menos no mundo ocidental.
No momento em que as crianças adquirem o estatuto de centro do mundo, passamos a ter um problema, ainda sem solução à vista. E um problema muito abrangente, obviamente para os adultos que orbitam em torno das crianças, sem espaço para si próprios, para os seus desejos e sonhos, mas também para as próprias crianças, que crescem com a ideia enganadora de que a vida se vai curvar diante da sua vontade, de molde a satisfazer os seus desejos.
É que esta ideia de crescer como centro do mundo, além de enganadora, é perigosa. É enganadora, porque não é verdadeira. À medida que crescemos, somos confrontados com o facto de não sermos o centro do mundo, de existirem os outros, também com o seu querer e os seus egos, e ainda com uma série de constrangimentos que não parecem ter a menor complacência para com os nossos desejos e vontades. É perigosa, porque não nos prepara para a contrariedade de não sermos o centro do mundo e de, pelo contrário, muitas vezes, o mundo parecer estar pouco preocupado em satisfazer os nossos caprichos, e continuar a girar, indiferente aos nossos planos.
Enganadas e impreparadas, as crianças — que, entretanto, deixaram de ser crianças, mas sentem dificuldade em deixarem de ser crianças, na medida em que crescer implica perder a ideia de centralidade no mundo — correm o risco de se sentir perdidas e algo desorientadas. É que, se as ensinaram a afirmar a sua individualidade e a defender o seu território, não as prepararam para fazerem o seu caminho em direção aos outros e para lidarem com a frustração.
A incapacidade de lidar com a frustração e com as contrariedades é, talvez, um dos grandes problemas dos nossos dias. Crescer enquanto centro do mundo, em vez de fortalecer o eu, pode contribuir para o fragilizar, tornando-o refém da aprovação e da atenção dos outros, impreparado e pouco resiliente para lidar com aquilo com que, mais tarde ou mais cedo, todos os seres humanos vão ter de se confrontar: com os desgostos, as tristezas, as dúvidas, as incertezas e todo o tipo de contratempos, uns mais graves do que os outros.
Por todos estes motivos, se é importante dar atenção às crianças, é relevante não as transformar no centro do mundo, sob pena de não as estarmos a ajudar a crescer nem a preparar para lidarem com a realidade. Os filhos são muito importantes, mas os seus pais também o são, sendo que todos têm direitos. Se as crianças têm o direito de crescer felizes, os seus pais têm igualmente o direito de ter algum tempo para si próprios, um momento para conversar sem constantes interrupções e um lugar na sala livre de brinquedos onde possam sentar-se e repousar, por momentos, antes de passarem à tarefa seguinte.
E os pais não têm de se sentir culpados se não estiverem sempre a colocar as crianças no centro do mundo. Devem pensar que, quando não o fazem, estão a fortalecer os filhos, preparando-os para lidarem com inevitáveis contrariedades; a ajudá-los a construir a interioridade que necessita de silêncio e de autonomia; e a orientá-los na caminhada em direção aos outros, tão relevante para encontrar o nosso lugar no mundo.
Pensar numa família como num lugar onde há espaço para todos e para cada um, tanto para as crianças como para os adultos, é uma ideia benigna, sensata, construtiva, equilibrada e impulsionadora de um futuro harmonioso e promissor. Parece que se trata de uma verdade de La Palice. Mas esta verdade tornou-se mais premente do que nunca. Basta olhar à nossa volta. Ou para o interior das nossas famílias.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990