“Marques’Almeida é para toda a família.” Dupla em destaque no terceiro dia de Portugal Fashion
Esta sexta-feira ficou, ainda, marcada pelas apresentações de Susana Bettencourt, Davii, Pé de Chumbo e Luís Onofre, tendo como palco o Palácio da Bolsa.
A luz passa pelo tecto envidraçado do Palácio da Bolsa, no coração do Porto, majestoso anfitrião do terceiro dia de Portugal Fashion, nesta sexta-feira. As malhas de assinatura de Susana Bettencourt, o trabalho artesanal da Pé de Chumbo e os elegantes sapatos de Luís Onofre deram vida ao espaço onde se destacam as colunas de pedra da sala e a talha dourada. Ao final da tarde, o Parque do Silo Auto recebeu um dos momentos altos desta edição com o regresso da dupla de sucesso internacional Marques’Almeida.
Nos bastidores, cabeleireiros e maquilhadores trabalham lado a lado com pinturas de D. Maria II ou D. Pedro IV, recordando a história liberal da Invicta. Na sala seguinte, Susana Bettencourt escolhe os brincos para o desfile que começa dentro de momentos. Se a designer não estivesse aqui, as suas malhas penduradas nos charriots seriam facilmente reconhecidas e essa assinatura vincada é algo de que se orgulha muito. “Desde o início da marca que quero que as pessoas conheçam o que é o produto Susana Bettencourt”, declara a criadora ao PÚBLICO.
Começou a fazer malha quando tinha cinco anos, nas férias de Verão com os avós, em São Miguel, nos Açores, onde nessa época era comum haver máquina doméstica, dada a escassez de oferta nas lojas. Continua a ter esse tipo de aparelho no atelier, em Guimarães (onde inaugurou a loja em Setembro) e é sentada à máquina que inicia o processo criativo. “Dá-me uma liberdade de expressão diferente. O ponto de partida é sempre mais artesanal e só depois passamos para a ajuda da tecnologia”, explica.
A dualidade entre artesanal e tecnologia é o que define a marca da criadora de 37 anos. “O nosso desafio é como fluir estes dois elementos, como expressar novamente esta fusão que é o pilar da marca”, resume. Para a proposta desta estação, fecha um ciclo no trabalho que tem vindo a desenvolver sobre o cérebro humano “e a forma como percepciona diferentes coisas”. Em Origens da percepção, como inspiração gráfica, focou-se “na partida mais visceral do olho, onde é obtida a informação e se processa a leitura da cor”.
Nessa relação entre olhar e processamento de informação, há uma barreira que dificulta a percepção ─ os ecrãs e as redes sociais. A reflexão de Susana Bettencourt sobre a manipulação da imagem espelha-se no rosto das modelos, com contornos exagerados nas cores RGB ─ vermelho, verde e azul ─ que dominam também a proposta, inspiradas pelos tons que se viam nas televisões antigas ao aproximar o olhar.
Em termos de técnicas de malha, a cada estação introduz uma novidade: desta vez, é o croché feito com dois cabos. Essas peças são construídas através de drapping (modelagem feita em cima do manequim). Antes disso, desenvolve digitalmente o jacquard da nova colecção que orienta todo o trabalho criativo e representa os prismas e os píxeis que o olho humano consegue captar.
Esses jacquards são facilmente reproduzíveis e hoje Susana Bettencourt já tem capacidade para entregar parte da colecção a fornecedores em apenas três semanas. Contudo, lamenta, “a conquista de novos clientes de lojas multimarcas está difícil”, dada a conjuntura nacional. Actualmente, a maior parte das suas vendas concretizam-se directamente ao cliente, quer através da loja online para países com o Canadá, os Estados Unidos ou o norte da Europa, quer na loja na cidade-berço, em especial para turistas. “Guimarães tem um turismo que encaixa bem no tipo de produto que estou a vender.”
Tendo as malhas como projecto de vida, é essa a expressão criativa de Susana Bettencourt, um trabalho que acredita não ter um fim. “Algumas pessoas pensam em desenhar, pensam numa silhueta ou até num fecho… A minha mente criativa, quando estou a ver alguma coisa, estou a ver aquilo em malha: será que vai ser um ponto ou em jacquard?”, declara. É assim que o cérebro da criadora percepciona a moda.
O voo de Davii e a cor de Pé de Chumbo
E se Susana Bettencourt ficou a trabalhar o mesmo tema durante mais de três anos, Davii, apesar de valorizar a continuidade entre colecções, prefere guiar-se pela intuição. “Não trabalho com um ponto de partida”, declara ao PÚBLICO, no rescaldo do desfile que marcou o início da tarde na casa da Associação Comercial.
Com peças dramáticas que chamaram a atenção da plateia, o criador brasileiro, a viver no Porto desde 2017 e que apresenta no PF há um ano, reflectiu sobre a sensação de planar, “levantar voo entre o céu e a terra”. O tema, “que remete para as asas”, espelhou-se no minucioso trabalho das mangas, que mimetizavam partes de um avião em drapeado: as asas, a cauda e as turbinas, por exemplo. “Sou muito manual no corte. É um processo muito de atelier, muito pessoal”, destaca o designer.
Por esse processo manual, grande parte das peças são exemplares únicos e a maioria é de produção limitada, cada uma delas numerada. “Claro que tem uma parte mais comercial, mas não posso dizer que é uma escala grande. Por agora é algo de atelier, tudo voltado para os princípios do feito à mão”, assevera Davi Fernandes. A delicadeza dessa manualidade estende-se à escolha dos materiais, com destaque para as sedas.
A “parte mais comercial” de que fala Davii foi aprofundada com a participação no showroom Tranöi, em Paris, onde esteve com o apoio do PF. “A aceitação da roupa foi fantástica. Já resultou em encomendas para o Canadá, França, Itália, Japão e Irlanda”, celebra.
Também a Pé de Chumbo esteve em Paris durante a semana de moda, a título individual, além de ter marcado presença em Milão e Nova Iorque com a nova proposta. “Vamos a feiras para fazer encomendas. Já temos um mercado muito razoável: 99,9% de o que vendemos é para o estrangeiro”, informa Alexandra Oliveira, criadora do projecto. Esta estação arrecadou novos clientes em Itália, China e Japão, ultrapassando os valores anteriores à pandemia, avança.
“Foi uma surpresa para mim porque era uma colecção que não estava confiante desde que começamos a fazer”, confessa a designer sediada em Guimarães. Alexandra Oliveira distingue-se pelo trabalho artesanal do fio, numa malha de assinatura, identificável até pelos mais desatentos. “É uma colecção que tem duas partes: uma mais sóbria, elegante e chique e outra mais jovem, muito colorida”, observa. Destaca-se o roxo, o rosa, laranja, que se por vezes se misturam na mesma peça.
Em termos de técnica, a novidade está na leveza da malha, mais aberta do que é costume, dando vida a túnicas, casacos e vestidos arejados. “É uma colecção mais leve do que as outras. E o sucesso talvez se deva ao facto de ser tão colorida”, termina Alexandra Oliveira.
Marques’Almeida e os anos 80
No Parque do Silo Auto, a segunda localização de desfiles desta sexta-feira, as crianças correm pelos bastidores improvisados, enquanto se tentam ultimar os derradeiros detalhes antes de começar o desfile mais esperado do terceiro dia deste PF. Marta Marques senta a filha Maria na cadeira de maquilhagem. Também a menina de cinco anos será uma das modelos a pisar a passerelle entre os lugares de estacionamento com vista para a cidade durante o pôr-do-sol.
É a primeira vez que a dupla sediada em Londres apresenta a colecção de criança num desfile, no dia em que lançam também a nova loja online só de roupa infantil. “Marques’Almeida é para toda a família e uma família inclusiva”, declara Marta. Apesar de já terem a linha de criança há algum tempo ─ lançam duas propostas por ano com 100 modelos ─ só agora se sentiram preparados para a mostrar de forma mais oficial: “Connosco as coisas são um bocadinho não planeadas. Era no Porto e temos amigos com criança também, fez todo o sentido.”
Vestir adultos e crianças não tem diferenças de maior e é, aliás, uma aprendizagem para o trabalho de design, notam. “Aprendemos muito com a maneira como elas [as filhas] se querem vestir”, nota Marta. E Paulo Almeida completa: “Sempre achamos as crianças muito cool porque não tinham preconceitos ainda. É a melhor altura para experimentar. Passamos isso aos adultos, não ter preconceitos a desenhar.”
Esse despir de preconceitos é algo que já apregoam há vários anos, desde que começaram a incluir vários tipos de pessoas nos desfiles, além das modelos profissionais. “Foi um processo de crescimento para nós. As perceber as pessoas que estão no desfile, percebemos também os consumidores”, defende a criadora. Foi assim que aprenderam “a ser cada vez mais diversos e inclusivos”, tornando-se uma das bandeiras da marca, que vende em mais de 100 lojas, em todo o mundo.
O lado inclusivo estende-se também a uma preocupação com o planeta, expressada, em 2020, num manifesto publicado sobre a responsabilidade ambiental e social da marca. Mas, o caminho para a sustentabilidade na moda “não é uma viagem linear”, reconhece Marta Marques. E é isso que têm vindo a descobrir: “Por exemplo, fazemos tingimentos naturais, mas depois mancham e desperdiçamos 300 peças ─ isso não é sustentável.”
No que toca aos materiais usados nas colecções, continuam a não utilizar poliéster virgem, apenas reciclado, e todos os algodões são orgânicos. Contudo, na moda há sempre desperdícios devido ao corte das peças ─ esses restos são agora utilizados na linha de criança. As gangas, que continuam a dominar a proposta da dupla, são todas orgânicas e tingidas sem recurso a água.
Esta estação, não faltam novidades, inspiradas no tema da colecção: os anos 80. A dupla analisou o design de Memphis nesta década, a sua cor, e a forma como abordava a identidade de género e outros temas. “Fazia-nos sentido que fosse algo vivo e celebrativo. Porque é importante celebrar aquilo que estamos a falar”, resume a criadora.
A celebração manifestou-se nas lantejoulas com padrões, nos “tafetás gigantes com drapeados”, nas mangas dramáticas. “É tudo novo porque os anos 80 são muito novos para nós. Não nos tínhamos aventurado, até percebermos que é uma década importante para enaltecer comunidades com orgulho”, conclui a designer. O último coordenado na passerelle, um vestido em tafetá com um vistoso laço nas costas resume o estado de espírito da dupla que agradece ao público com as duas filhas pelas mãos.
O jardim de Onofre
De volta ao Palácio da Bolsa, está estendida uma passadeira branca na sala de desfiles. E é para lá que o olhar se desvia quando a primeira modelo entra: é a vez de Luís Onofre apresentar a proposta da próxima estação quente. O criador e presidente da Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e Seus Sucedâneos (APICCAPS) foi até ao Éden de onde trouxe cor e, uma vez mais, motivos da natureza.
Num dégradé entre os brancos, dourados e o azul, laranja, rosa e verde, Onofre apostou nos saltos que o caracterizam ─ desta vez, em formato de diamante ─, sem esquecer as botas texanas ou os rasos. Os saltos aparecem, em sinal de uma tendência de mercado, cada vez mais largos e frequentemente acompanhados de uma plataforma.
Para quem quer manter a elegância, mas sem descurar de todo no conforto (ainda que o designer o prometa em todos os modelos), Onofre encontrou uma solução inovadora: “É uma construção nova, uma tripla plataforma, que acaba por dar mais conforto. É a primeira vez que lanço esta linha.”
Numa tentativa de fomentar a personalização e, novamente, o conforto, inaugura, ainda, um novo detalhe técnico. “É um cursor com mola que é usado na parte desportiva dos anoraques da neve, que transportei para uma tira de sandálias”, explica, enquanto mostra a inovação que permite que o sapato seja ajustável a qualquer tipo de pé. As amantes de brilho vão rever-se nas nossas tiras para o tornozelo com cristais Swarovski em vários tons, “confortáveis, fáceis de apertar” e que podem ser alteradas consoante a disposição.
Com os olhos do público vidrados na passadeira branca, Onofre encerrou o terceiro dia de desfiles do PF. A 51.ª edição termina este sábado com os desfiles de Estelita Mendonça, Pedro Pedro e Hugo Costa na Oficina do Ferro. O recém-inaugurado Mercado do Bolhão recebe Alexandra Moura e Miguel Vieira. No Museu Nacional Soares do Reis, Diogo Miranda, Huarte, Oranga Culture Nigeria, David Catalán e Alves/Gonçalves fecham o certame.