Cada passo e cada minuto, uma lição
Pouco depois de entrar pelo meu pé na freguesia de Caxarias, perguntei por um restaurante a uma senhora vestida de bata preta e botas de borracha esverdeadas que limpava um terreno muito inclinado com uma sachola.
Antes de iniciar a caminhada Lisboa-Coimbra-Porto, escrevi, à mão — claro que ainda escrevo à mão e que tenho sempre um bloco de notas e uma caneta no bolso! —: “O caminho e o tempo serão os meus professores. Cada passo e cada minuto, uma lição.”
Acreditava, como acredito agora, já o escrevo com a devida confirmação, que o isolamento convidaria a uma profunda reflexão interior. Pratico-o noutras ocasiões, eventualmente numa base diária e enquanto realizo as mais comuns das tarefas diárias, como lavar os dentes ou lavar a loiça, outra coisa é estar à solta a caminhar pelo mundo, restringindo (voluntariamente) os telefonemas.
“Se não me conheço a mim mesmo, é óbvio que não tenho base para a ação; o que faço é mera atividade, reação de uma mente condicionada, e, portanto, sem significação. Uma reação condicionada não pode libertar-nos nem pôr ordem no caos”, disse, há mais de 70 anos, Krishnamurti (1895-1986), filósofo e escritor nascido na Índia, que não pertencia a qualquer organização religiosa, seita ou país, afirmando serem esses os fatores que dividem os seres humanos e que provocam conflitos e guerras.
Krishnamurti reivindicava a absoluta “necessidade de uma revolução na psique de cada ser humano, enfatizando que tal revolução não poderia ser levada a cabo por nenhuma entidade externa, fosse religiosa, política ou social. Essa revolução só poderia ocorrer através do autoconhecimento”.
Algum tempo depois de deixar Fátima, o meu pensamento foi tomado de assalto pela imagem de duas mulheres a deslocarem-se de gatas no santuário a caminho da Capelinha das Aparições. Perguntei-me durante largos minutos se em algum momento o seu pensamento é tomado por algum resquício de dúvida ou se a fé tudo preenche sem deixar espaço a qualquer intrusão nociva. Naturalmente que não cheguei a conclusão alguma.
Pouco depois de entrar pelo meu pé na freguesia de Caxarias, perguntei por um restaurante a uma senhora vestida de bata preta e botas de borracha esverdeadas que limpava um terreno muito inclinado com uma sachola.
– Bom dia, minha senhora, como está? Venho em busca de um restaurante que uns senhores me falaram ali atrás. Disseram que era uns quatro ou cinco quilómetros mais à frente ao pé de uma igreja –, detalhei, esperançoso numa resposta pronta.
– Bom dia, menino. Restaurante aqui não há. Em tempos houve um, mas já fechou. De onde vem?
– De Fátima.
– A pé?
– Pois.
– Também já fui várias vezes. Daqui é um pulinho. Mas é de onde?
– Eu sou dos arredores de Lisboa.
– E desde onde vem a pé?
– De Lisboa.
– E vem sozinho?
– Quase sempre, sim.
– Há quanto tempo?
– Há seis dias, já.
– Jesus! Dava em doida se ficasse tanto tempo sozinha comigo própria!
Ri a bom rir. Ela também. Explorei:
– Então, mas não gosta de estar sozinha? É má companhia?
– Ai, menino, para mim sou má companhia, sim senhor. Se me vejo sozinha muito tempo sem ocupação, começo a cismar que o meu ido marido me está a chamar lá do outro lado. No dia seguinte vou logo ao cemitério pôr-lhe flores na campa.
– Ah, sendo assim, é melhor estar sempre acompanhada. Nem que seja pela sachola.
– Ora está a ver como sabe? Se acaso ele me aparece, ameaço-o e ele vai-se.
Voltei a rir. Ela também.
– Então e onde há restaurante para comer?
– Aqui não há. Andando mais um quilómetro, chega ao pé de uma igreja, não é esta capela aqui, é uma igreja maior, e vira assim para a direita. Tem lá uma churrasqueira.
Agradeci e segui caminho. Quase um quarto de hora depois, encontrei a igreja e a churrasqueira.
– Boa-tarde, serve refeições?
– Refeições não sirvo, o mais que posso fazer é colocar o frango numa embalagem de alumínio e deixo que o senhor coma aí numa mesa.
– Deixa? Obrigado. Então e um garfo e uma faca, faculta-me?
– Não, isso não.
Pensei para mim próprio que podia comer o frango à mão, como já fiz dúzias de vezes, mas ocorreu-me uma frase que encaixa como uma luva na situação e após agradecer e despedir-me, saí do estabelecimento com três ideias para reflexão:
- A churrasqueira tem tanta freguesia que pode dispensar um cliente.
- Talvez a senhora devesse passar mais tempo consigo própria ou com uma sachola na mão.
- A senhora estava só num dia mau e eu fui pouco tolerante.
A frase de que me lembrei (e não me vou armar aos cágados a escrever que me lembrei palavra por palavra e que era da autoria de Carl Jung; lembrei-me do sentido) e que estão mortinhos por saber é a seguinte: “O encontro de duas personalidades é como o contato entre duas substâncias químicas: se reagirem, ambos se transformarão.”
Saí ileso. Ela também. Almocei tranquilamente numa pastelaria medalhada de bronze no concurso Bolo-Rei Escangalhado.
– Ainda é cedo, só no início de dezembro… – lamentou a rapariga que me atendeu.
Anotei mentalmente e retomei a caminhada, decidido a continuar a descobrir-me a mim próprio, nomeadamente porque serei eu tão guloso.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990