Porquê caminhar 300 quilómetros?
Um cenário cinzento e feio que me levou a concluir, uma vez mais, que precisamos de olhar seriamente para a necessidade voltar ao essencial, ao básico, ao primário. Como caminhar. Fica o convite para se juntarem a mim.
“Porquê?” Já me colocaram esta questão mais de duas dúzias de vezes desde que divulguei que pretendia realizar uma caminhada a ligar os Institutos de Oncologia (IPO) de Lisboa, Coimbra e Porto. A ideia surgiu-me já na sua versão final no dia 29 de agosto deste ano enquanto lavava a loiça do jantar. Olhando para esse momento, tenho quase a certeza de que essa ideia, que encaro como uma missão, esteve a formar-se no meu subconsciente sem que me apercebesse para se revelar, inteira, naquele momento, de uma forma tão definitiva que tive a certeza de que ia acontecer. Não é comum isto suceder. Não comigo. Imagino que também seja assim com a maioria das pessoas. Mas foi assim. No dia seguinte, conversei com os editores do PÚBLICO, contactei uma agência de publicidade de um amigo, procurei alguns apoios e confirmou-se que a ideia era mesmo uma certeza.
Nesta quarta-feira, a caminhada começou. Percorri 37,5 km — enganei-me redondamente nos cálculos prévios; esperava fazer 30, foram mais 7,5… — entre o IPO de Lisboa e Vila Franca de Xira em nove horas e 18 minutos (inclui muitas pausas para comer, tirar fotografias, escrever notas), 42.694 passos. O percurso é tudo menos agradável. Trânsito ininterrupto, filas e mais filas de carros e camiões às buzinadelas, deitando fumo muito para lá do permitido, e lixo, tanto lixo na berma das estradas. Um cenário cinzento e feio que me levou a concluir, uma vez mais, que precisamos de olhar seriamente para a necessidade voltar ao essencial, ao básico, ao primário. Como caminhar. Fica o convite para se juntarem a mim.
“Porquê?”, perguntam-me amiúde sobre esta caminhada.
Por gratidão para todos os que cuidaram de mim quando estive doente.
Porque houve alturas, muitas, em que não pude caminhar.
Por solidariedade por todos os que, por estarem doentes não podem caminhar.
Porque tive a imensa sorte de ficar bem e por sentir que devo fazer algo pelos outros.
Porque nunca fiz nada de verdadeiramente arriscado na vida — a não ser ter filhos, claro, o maior risco e responsabilidade de qualquer mulher ou homem.
Nunca fiz nada parecido com isto. Apesar de praticar exercício físico quase todos os dias, nunca andei 30 quilómetros num dia (muito menos 37,5). Nem 25. Nem sequer 20. Procuro felicidade, procuro mostrar um caminho, uma luz, transmitir uma mensagem de esperança a todos aqueles que, por se encontrarem a viver dias difíceis, dias terríveis, não a têm. Assumo-o aqui, sem presunção, mas com a convicção de que sou um deles, alguém que teve cancro e duas recidivas graves, mas que sente que nada venceu e que a marca é indelével e que estamos todos no mesmo barco. Só que agora, eu consigo caminhar, puxar outros, como em tempos me puxaram a mim.
Passavam poucos minutos das 8h30 da manhã quando, a partir do jardim em frente à porta principal do IPO de Lisboa, dei o primeiro passo rumo ao IPO de Coimbra, o ponto intermédio de uma caminhada que terminará no IPO do Porto. Atrás de mim, depois de muitos abraços, ficaram a acenar-me a Teresa, a minha mãe, a Vanda (VS Management, um dos patrocinadores da iniciativa), a Célia (diretora de comunicação do IPO Lisboa), a Sandra (técnica do departamento do IPO Lisboa), a Filipa (Acreditar) e a Lucília Salgado, diretora clínica do IPO.
O IPO de Lisboa ficou para trás fisicamente, mas permanece em mim. Permanecerá para sempre. Ali passei muitos dias e muitas noites, ali muito sofri e chorei, mas também muito alegrei e ri. Altos e baixos de um período da vida difícil, mas de uma descoberta imensa e ilimitada, alimentada por esperança em conseguir ser feliz mesmo quando se vive com esta terrível doença.
É essa mesma esperança que quero agora transmitir a todos os que sofrem. Serão 13 dias de caminhada, um passo de cada vez. Serei o caminhante, não o protagonista. O protagonista é a esperança, a mensagem de esperança, os 300 km de esperança, que serão muitos mais certamente, a força coletiva de todos os que lidam com o cancro, sejam os portadores da doença, os familiares, os amigos, os profissionais de saúde, as instituições que acarinham e apoiam. Esse é o âmago desta caminhada. As pernas são minhas, a missão de todos. Que não se esgote no cancro, que se alastre a todas as doenças como uma cura, um alívio, uma força, como um amor que a todos abrange, que a todos conforta e ilumina. Que seja um farol de esperança.
Nota: Há empresas a patrocinar esta caminhada. Não ganharei um tostão. Por apresentar-me associado a marcas, pedi aconselhamento sobre a questão ao presidente do Sindicato de Jornalistas, que me aconselhou a requerer um parecer à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista sobre a necessidade de suspender ou entregar a minha carteira profissional. Fi-lo por uma questão de ética. O parecer ainda não chegou, mas não me sentiria bem sem este esclarecimento público.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990