Escrever com o coração
Nenhuma feira é tão boa para chegar à fala com um autor como a Feira do Livro de Lisboa, onde as sessões de autógrafos são às mãos-cheias em cada um dos 15 dias que dura o evento.
Há pessoas que gostam de associar o rosto do autor aos livros que leem. Outras há que consideram esse exercício irrelevante. E há aquelas levam o desprezo pelo rosto do autor ao extremo de cultivarem a dissociação entre o rosto do autor e aquilo que escreve, como se conhecer a fisionomia do autor pudesse interferir na qualidade da obra.
Não falo de cor. Conheço duas pessoas que tudo o que querem de um livro é nutrir-se da mensagem, desprezando quem o escreveu. Confesso que nunca tinha pensado neste tema até assistir, clandestinamente, a um debate a dois, realizado à margem das atividades oficiais da última Feira do Livro de Lisboa. Apanhei a conversa a meio e resguardei-me numa sombra a ouvir. (sim, eu sei que é feio)
— Eu quero lá saber da cara do autor. Ou gosto do livro ou não gosto.
— Mas não tens curiosidade?
— Curiosidade de quê? Interessa-me o que o autor conta e não se é bonito ou feio.
— Eh pá, não é nada disso. A cara do escritor não vai influenciar a minha opinião sobre o livro, mas conhecer a cara do indivíduo que escreveu o que estou a ler faz com que o sinta mais presente…
— Mais presente? Sentes-te sozinha quando lês, é isso?
— Oh, és parvo.
Uma conversa teatral, nenhuma dúvida sobre isso. Desprovida de sentido, concordo. Mas, ainda assim, não posso omitir que tive vontade de intervir para defender que é perfeitamente legítimo que se queira conhecer a cara de quem levamos na mochila ou sacola, junto à carteira e ao telemóvel, ou debaixo do braço — quem quer ser visto em más companhias? —, e cujas palavras consumimos no café, no jardim ou na nossa casa, no nosso ninho, bolas!
Não intervim. Mas fiquei a matutar no assunto e, arriscando que pudessem pensar que perdera o juízo, indaguei algumas pessoas sobre o tema. Foi então que descobri duas almas que fogem a sete pés do rosto do autor do livro, evitando até as orelhas da capa, onde normalmente se encontra o rosto, mais ou menos sorridente, do autor. Ainda existem editoras que cultivam a omissão da fotografia do autor, mas tenho ideia de que essa prática é cada vez mais rara. Numa era de predominância do visual, é fácil dar de caras com o rosto do autor do livro que estamos a ler. Mesmo que não o procuremos.
Encontro vantagens em conhecer o rosto dos autores dos livros e, sobretudo, as suas vozes. Às vezes, gosto de interromper a leitura e imaginar que oiço a história contada por quem a pensou e enredou. Mas não sendo possível chegar ao conhecimento da voz, procuro conhecer a cara. Facilita quando se quer imaginar a voz de uma pessoa. Pelo menos comigo funciona assim. Uma estratégia falível, como é óbvio, ou não houvesse por aí dúzias de homens com vozes agudas e mulheres com vozes grossas. Nada contra um e outro caso, registe-se.
Atualmente, é relativamente fácil descobrir a cara de um autor. Não existindo fotografia impressa no livro, encontrar-se-á o que se pretende, com maior ou menor dificuldade, na internet. Quanto a conhecer o autor ao vivo, a coisa complica-se, sobretudo se se tratar de um estrangeiro. Mas sendo português ou lusófono, as apresentações das obras e as sessões de autógrafos das feiras do livro são boas oportunidades para tal. Eis-nos chegados onde pretendia: nenhuma feira é tão boa para chegar à fala com um autor como a Feira do Livro de Lisboa, onde as sessões de autógrafos são às mãos-cheias em cada um dos 15 dias que dura o evento.
Um aparte: não cheguei a conhecer José Saramago, o meu herói dos livros, a razão da minha paixão pela leitura. Mas tive a felicidade de conhecer Luis Sepúlveda, outro dos meus heróis.
Na edição deste ano da Feira do Livro de Lisboa, fui convidado para representar um rol de cem autores lusófonos — não conheço a cara nem de metade — que contribuíram com contos e crónicas para a elaboração de um livro. Abstenho-me de referir o título da obra para não fazer promoção em causa própria.
Cheguei à banca onde “meu” livro estava à venda antes da hora marcada para o turno de uma hora a dar autógrafos. Luís Farinha, o autor que me antecedia, ainda ocupava a mesa reservada à sessão de autógrafos do seu livro O Universo Enche-se de Poesia. Luís fazia-se acompanhar do pai, segundo percebi. Emocionei-me com o quadro. Um pai, o filho e o seu livro. Dei um passo para o cumprimentar, mas algumas pessoas avançaram nesse preciso momento para pedir ao Luís que lhes autografasse os livros e contive-me. Dirigi-me à banca e folheei o universo de poesia do Luís Farinha. O acaso levou-me a um poema intitulado Pai, que finaliza assim: “Perante o bater de corações / Num tempo, que do sonho sai / Não prendam de lágrimas, vossas emoções / Porque em ti viverei para sempre, Pai.
Distraí-me na leitura. Quando regressei, já o Luís tinha ido à sua vida. Munido de caneta e garrafa de água, ocupei o lugar de honra da mesa dos autógrafos, à sombra de um chapéu de sol. E ali fiquei, sorrindo, observando quem passava. Àquela hora, havia mais gente a comer do que com livros na mão. Normal, eram cinco da tarde, hora da bucha vespertina. Além disso, regra geral, as pessoas preferem dar uma voltinha ao recinto e espreitar as modas antes de decidirem os livros que vão comprar.
Ao fim de meia hora de sessão de autógrafos, a caneta mantinha-se adormecida em cima da mesa, mas eu já havia colhido umas duas dúzias de sorrisos e acenos carinhosos. A dada altura, uma rapariga muito jovem, que segurava um cão pela trela, aproximou-se da mesa. Olhou para a capa do livro e levantou o polegar. Agradeci. Respondeu-me numa língua que não reconheci. Pareceu-me nórdica. Despediu-se com um gesto de mão. O cão deu-me uma lambidela. A caneta manteve-se pousada na mesa. Ficaram sorriso e lambidela.
— Luis, ainda não foi desta — disse eu, sorrindo.
— Paciência, amigo, paciência. Mantém-te firme e digno, admiro os resistentes, os que fizeram do verbo resistir, carne, suor, sangue, e demonstraram sem espaventos que é possível viver, mas viver de pé, mesmo nos piores momentos — respondeu o meu parceiro de mesa.
— Conheço isso. As Rosas de Atacama?
— Ah, já leste!
— Claro, já li tudo o que escreveste. Conhecer-te é um sonho concretizado — disse-lhe, estendendo os livros que havia levado para que o meu herói os autografasse.
– Sonhamos que é possível outro mundo e tornaremos realidade esse outro mundo possível.
— O Poder dos Sonhos!
— Não falhas uma, rapaz!
— Li e anotei cada um dos teus livros. Aquilo a que damos atenção, fica — respondi.
No gesto de simpatia, Sepúlveda folheou o meu livro.
— Amigo, continua a escrever com o coração — disse.
E eu agradeci e guardei a medalha no peito.
Só o trecho final deste diálogo é verídico. Aconteceu em 2016, na apresentação do meu primeiro livro, quando partilhei com Luis Sepúlveda um palanque na Feira do Livro de Lisboa. Durante cerca de uma hora, tive o privilégio de ouvir, a não mais de um metro de distância, Sepúlveda esmiuçar o significado do livro História de um Cão Chamado Leal. No final, a fila para os autógrafos estendeu-se por dezenas de metros.
Uma realidade tão diferente da imensa solidão que vive a maioria dos autores nas sessões de autógrafos na Feira do Livro. Louve-se a boa vontade da organização que vai alertando os visitantes da feira para os horários das sessões de autógrafos. É engraçado ouvir o nosso nome soar nos altifalantes. Sobretudo, sabendo que o Marquês de Pombal está ali tão perto, tudo vendo e ouvindo.
Convivo bem com a solidão. Não é o número de leitores, muito menos as vendas ou autógrafos, que definem um livro. E depois há os sorrisos e as ideias que se colecionam durante este protagonismo efémero, neste assumir do livro que se escreveu com a exposição num palanque, mesmo sabendo que algumas pessoas não querem relacionar a cara do autor com o livro que leem.
De repente, ouvi alguém dizer o meu nome. O som não proveio dos altifalantes. Alguém se dirigia de viva voz, ali bem perto. Levantei-me e procurei um rosto conhecido. E eis que vi o Duarte. O Dudas, pá!, meu querido colega e amigo da faculdade. Acho que há 25 anos que não nos víamos. Abraçámo-nos com o afeto de sempre. Conversámos um pouco. Como na véspera, há um quarto de século. Despedimo-nos. Eram já seis da tarde. A sessão de autógrafos terminara. Engoli o resto da garrafa de água, recolhi a caneta e agradeci o acolhimento e simpatia às meninas da banca.
— Lamento por si, não vendeu nada — disse-me uma delas, franzindo o sobrolho.
— Não tem importância — respondi, sorrindo, com o abraço do Dudas ao peito.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990