Protestos que vêm de longe para se ouvirem em três dias

Pela quarta edição do Encontro da Canção de Protesto passam vozes de Portugal, Brasil, França, Itália, Catalunha e Ucrânia. Em Grândola, até domingo.

Começou em 2019 e não tem falhado um ano, apesar da pandemia. Falamos do Encontro da Canção de Protesto, que, não saindo do seu berço, Grândola, marcou a quarta edição para os dias 16, 17 e 18 de Setembro, já a partir de amanhã. Para os que acham que as ditas canções de protesto, ou o que por elas se entenda, são coisa de séculos recentes, convirá ler o volumoso livro de estreia do britânico Dorian Lynskey, 33 Revolutions per Minute, a History of Protest Songs, que em quase novecentas páginas nos dá um panorama mais vasto da sua existência.

Distinguido no ano em que foi editado, 2011, como “livro do ano” pela New Musical Express, nele Dorian Lynskey (que escreve sobre música, política, cinema e livros para jornais e revistas como The Guardian, The Observer, GQ, The Spectator, Empire ou Mojo) lembra que a tradição das canções de protesto é antiga, remonta pelo menos ao século XIII, e vai das canções dos Goliardos (que Carl Orff aproveitou para a sua Carmina Burana, em 1936) às trovas satíricas medievais, das canções pró e anti-guerra nascidas na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) às “mais de 800 canções” escritas pelo pianista e compositor inglês Henry Russell (1812-1900) “condenando a escravatura, o alcoolismo, a industrialização e as condições nos hospícios”.

Por falar em industrialização, dela nasceram centenas de canções como reflexo das terríveis condições de trabalho nas fábricas e nas minas nos séculos XVIII e XIX. O poeta, filósofo e activista político inglês Edward Carpenter (1844-1929) coligiu 55 destas canções num livro editado em 1888 a que chamou Chants of Labour: A Song Book of the People with Music e no qual reproduzia, com letras e partituras, canções panfletárias: Come, comrades, come!, True freedom, The workers, England arise!, Hymn of the proletariat, No master, Song of the miners, To liberty, A new Marseillaise, etc. Lynskey, já quase no final de 33 Revolutions, cita (pág. 687), um texto de Oscar Wilde onde este analisava o livro de Carpenter.

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Capas dos livros de Edward Carpenter (1888) e Dorian Lynskey (2011)

Vale a pena citá-lo: “Não são de grande valor literário, esses poemas que foram habilmente musicados. São feitos para serem cantados, não para serem lidos. São rudes, directos e vigorosos, e as melodias são emocionantes e familiares. De facto, qualquer multidão poderia trauteá-los com facilidade... É evidente pelo livro do sr. Carpenter que, se a Revolução algum dia irromper na Inglaterra, não teremos rugidos inarticulados, mas sim agradáveis alegrias e graciosos trechos de canções.”

O livro de Carpenter pode ser consultado na íntegra e gratuitamente no Internet Archive, enquanto o de Lynskey continua disponível, em várias edições e com capas diferentes. Uma delas, a que é citada neste texto, tem no centro da capa (vermelha) um círculo onde se vêem John Lennon, os Clash, Billie Holiday, Bob Dylan, Woody Guthrie e o rapper Chuck D, além de uma marcha pelos direitos civis de cidadãos negros norte-americanos.

O título do livro, na ambiguidade que lhe permite a língua inglesa, joga com a velocidade de rotação dos LP (33 Revolutions per Minute, ou 33 rotações por minuto) e com a ideia de 33 revoluções, porque são 33 as canções nele dissecadas em datas, factos e histórias, de Strange fruit de Billie Holiday (1939) a American idiot, dos Green Day (2004), citando de passagem outras centenas.

O que tem isto que ver com Grândola? Tudo, porque é esta a essência do Observatório da Canção de Protesto, que já realizou as edições de 2019, 2020 e 2021 e para a de 2022 tem um programa onde cabe uma exposição sobre Música & Conflito (Cantigas do fogo e da guerra), também tema de um debate, a par de outros dedicados a Portugal (A canção de protesto em Portugal no abraço europeu) e ao Brasil (A canção de protesto na ditadura militar brasileira e na era de Bolsonaro). Será exibido, como já se disse numa destas crónicas, em Maio, o filme N’Effacez Pas Nos Traces! - Dominique Grange, uma cantora de protesto, de Pedro Fidalgo, seguido de um debate com o realizador, a cantora e o seu marido, o conhecido ilustrador e autor de BD Jacques Tardi.

Dominique também cantará, na noite de sábado, no concerto Sem Muros Nem Ameias, num palco por onde passarão outras vozes célebres contestatárias como as de Maria del Mar Bonet, Borja Penalba e Marina Rossell (todos da Catalunha) e ainda Zeca Medeiros com Filipa Pais por convidada. Noutro dia (sexta), também se cantará A História Musical da Ditadura Brasileira, antes de se ouvir o “folk de combate” dos italianos Modena City Ramblers, fechando no domingo com a Kantata do Tecto Incerto, pela Casa da Achada, e a voz da ucraniana Kateryna Àvdysh. Para não nos esquecermos de que há guerra aqui perto.

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