Viver sem filtros dos telemóveis? Há quem não consiga e viva obcecado com a perfeição, alertam especialistas
Aos consultórios de medicina estética chegam pacientes acompanhados de fotografias com filtros. As especialistas em medicina estética e psicologia preocupam-se que esta procura de perfeição. Hoje assinala-se o Dia Mundial da Fotografia.
Uns lábios mais volumosos, umas maçãs do rosto mais salientes ou uns olhos azuis — tudo desaparece quando se tiram os filtros. Na era das redes sociais, a dependência dos filtros de imagem é cada vez mais preocupante, dizem as especialistas, a propósito do Dia Mundial da Fotografia, celebrado nesta sexta-feira, 19 de Agosto. Das intervenções estéticas obsessivas aos sinais de isolamento social, há a que prestar atenção a miúdos e graúdos.
“A comparação é humana, mas os filtros não”, avisa Catarina Santos, especialista em medicina estética. A médica da MyClinique, em Lisboa, relata que todos os dias chegam ao seu consultório pedidos “inspirados nas redes sociais” — “muitas vezes acompanhados pela própria selfie modificada por um filtro”. A procura recai sobretudo nos lábios mais carnudos, nos queixos mais proeminentes, narizes mais estreitos e pele sem imperfeições, enumera.
Os resultados almejados pelos pacientes procuram mimetizar na vida real o resultado do uso de um filtro. Catarina Santos recorda um estudo de 2017, realizado nos Estados Unidos: “55% das pessoas que se submeteu a uma rinoplastia admitiu fazê-lo pelo desejo de ficar melhor nas fotografias”. E explica: “Muitas das vezes é tecnicamente impossível reproduzir o que foi elaborado por um computador, principalmente porque falta a terceira dimensão da vida real.”
E mesmo que fosse possível reproduzir essa imagem, provoca a médica, “queremos ter um rosto desenhado por um robot?”. Se assim fosse, sublinha, passaríamos a ter um mundo “de rostos padronizados”.
Como alternativa, propõe “harmonizar” o rosto em vez de o “desconfigurar”. A harmonização facial, detalha, num texto enviado ao PÚBLICO, é “um conjunto de procedimentos que visa destacar as feições de cada pessoa”. O objectivo, assevera, “é realçar o que cada um considera mais belo”, comparando o processo à “alfaiataria personalizada”, que não retira expressão. Por exemplo, poderá apenas afinar-se o queixo, destacar as maçãs do rosto, projectar mais os lábios e elevar as sobrancelhas.
E quando se torna uma obsessão?
A psicóloga clínica Sofia Andrade preocupa-se que esta necessidade de atingir “o eu ideal” cause o esquecimento de cuidar “da realidade física”. Já a necessidade constante de intervenções estéticas, acredita, “revela muito sobre a vulnerabilidade do próprio sentido de identidade” e “falta de amor-próprio”.
“É importante compreender os limites entre a diversão de um filtro e uma obsessão”, avisa em conversa com o PÚBLICO. Nos grupos mais vulneráveis, em especial os adolescentes, exorta aos pais que estejam atentos a sintomas de “sensação de vazio, tristeza, ansiedade, angústia e depressão”. E observa: “Está tudo associado ao facto de não serem como aquela imagem [com filtro].”
No limite, estas situações levam ao isolamento social, para o qual também a pandemia veio contribuir. Depois de dois anos de contactos sociais mais reduzidos, em que as interacções eram feitas através dos smartphones, os adolescentes vêem-se obrigados a voltar à realidade e a deixarem de se esconder por trás de um filtro. “Acompanhei uma jovem que deixou de ir às festas de aniversário porque a sua imagem no Instagram não correspondia à imagem real. Sentia que estava a defraudar os outros”, conta a psicóloga.
Na prática, trata-se muitas vezes de uma “dismorfia corporal”, em que a pessoa não tolera a sua imagem sem os filtros. “Pode levar até a perturbações alimentares”, diz. Sofia Andrade alerta especialmente para os transtornos de personalidade que advêm destes casos. “É a ideia de criarmos imagens para as redes sociais, criarmos cenários que não correspondem à realidade. Que sentido busco? Esta busca da perfeição pode levar até à ideação suicida”, analisa.
Além do isolamento social, a psicóloga clínica assevera que é preciso estar atento a outros sinais como, por exemplo, “evitarem atender o telefone por videochamada”, “crises de intensa raiva” ou quando parecem “viver num mundo de idealização”. E exemplifica com outro caso: “Uma jovem chateou-se com uma amiga porque aquela publicou uma fotografia sem filtro.”
Mas não se devem descartar as culpas apenas para os filtros de Instagram, continua Sofia Andrade. Por isso, exorta aos pais para que “criem espaços de diálogo”. E conclui: “Estão-se a perder os sinais, porque os olhos estão todos voltados para um ecrã.”