Dois impeachments e uma enxurrada de escândalos depois, nada parecia travar Donald Trump, o ex-Presidente dos Estados Unidos, que não esconde querer voltar à Casa Branca em 2024. Nada, até à semana passada.
Ou talvez ainda não seja desta.
O que levou o FBI a fazer buscas à casa de Trump na Florida?
Na segunda-feira, 8 de Agosto, agentes do FBI foram a Mar-a-Lago, a famosa mansão de Trump na Florida, recuperar 26 caixas com documentos que o ex-Presidente dos EUA estava obrigado, por lei, a enviar para os Arquivos Nacionais quando deixou a Casa Branca a 20 de Janeiro de 2021.
Entre essas caixas estão 11 conjuntos de documentos classificados como secretos ou confidenciais que estarão relacionados com armamento nuclear (não é claro se dos próprios EUA ou de outro país). Ou seja, potenciais segredos de Estado que, em teoria, não poderiam estar na cave de uma mansão de um ex-Presidente.
De que crimes pode ser acusado Trump?
O antigo Presidente está a ser investigado por suspeitas de ter violado três leis:
- A Lei de Espionagem, sendo que aqui não está em causa uma acusação de espionagem, mas antes o facto de Trump estar ilegalmente na posse de documentos sensíveis. Pode vir a ser acusado de um crime por cada documento, cada um dos quais valendo uma pena de prisão de até 10 anos
- A Lei Sarbanes-Oxley, relativa ao crime de obstrução de justiça. Trump é suspeito de esconder ou destruir documentos com o objectivo de impedir ou influenciar uma investigação criminal. Cada crime, neste âmbito, pode valor até 20 anos de cadeia. Ainda não é claro se a obstrução aqui está relacionada com esta investigação dos documentos confidenciais em Mar-a-Lago ou com outra investigação criminal (Trump enfrenta várias, como já vamos ver)
- Uma lei genérica relativa ao roubo ou destruição de documentos do Governo, em que cada crime pode valer até três anos de prisão
Qual é a defesa de Trump? Que explicações tem dado?
Como habitual, Trump tem disparado para todos os lados:
- Afirmando que, enquanto Presidente, desclassificou os documentos em causa. Ou seja, que lhes retirou o selo de top secret. É difícil provar e igualmente difícil desmentir que tal tenha acontecido, já que Trump pode tê-lo feito verbalmente, sem assinar nenhum documento. No entanto, mesmo que tal tenha havido uma desclassificação, Trump continuará a responder pelo desvio e posse ilegal destes documentos. E no caso de alguns, a questão da desclassificação é irrelevante, já que serão tão sensíveis que nunca poderiam ser sequer consultados fora das instalações de algumas agências do Governo dos EUA
- Dizendo que sempre esteve disponível para devolver os documentos. No entanto, os Arquivos Nacionais contam uma história diferente, revelando que há meses que tentam reaver documentos que deveriam ter sido entregues antes do fim do mandato presidencial, como todos os antecessores o fizeram. Funcionários dos Arquivos foram buscar 15 caixas de documentos a Mar-a-Lago em Janeiro, mas Trump continuou na posse de outras 26, agora recuperadas pelo FBI, depois que os Arquivos Nacionais terem apresentado uma queixa à justiça
- Acusando Barack Obama de ter feito o mesmo, de ter levado para Chicago, depois de ter saído da Casa Branca em 2017, "33 milhões de páginas, muitas delas secretas". Mas a acusação foi frontalmente desmentida pelos Arquivos Nacionais na sexta-feira, numa declaração em que se esclarece que as 30 milhões de páginas estão na posse dos Arquivos e que não se trata de documentação confidencial
- Declarando que as buscas de 8 de Agosto foram ilegais. Mas na sexta-feira, com a divulgação do mandado de busca e a conferência de imprensa do procurador-geral dos Estados Unidos, Merrick Garland, tornou-se claro que a operação seguiu todos os preceitos legais: foi autorizada por um tribunal federal após a devida fundamentação, que foi aprovada ao mais alto nível (por Garland, pessoalmente), e que os advogados de Trump receberam o mandado, como exige a lei
Que outros processos judiciais enfrenta Trump neste momento?
Há pelo menos 15 ao nível estadual e um a nível federal. Eis os principais:
- No estado da Geórgia, investigam-se as suspeitas de pressão de Trump sobre funcionários eleitorais para manipularem o resultado das eleições de 2020, que o então Presidente perdeu
- Há seis processos em cursos em que Trump é suspeito de ter incentivado o assalto ao Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021, e de ter dado cobertura aos manifestantes violentos que lançaram o caos em Washington. E pode surgir uma sétima acusação, esta da parte do procurador-geral de Washington DC
- Ainda em relação ao assalto ao Capitólio, o inquérito que corre no Congresso poderá terminar com recomendações à justiça federal para que investigue criminalmente o papel de Trump nos acontecimentos de 6 de Janeiro
- Em Nova Iorque, a procuradoria estadual está a investigar suspeitas de que Trump manipulou o valor do seu património, tanto para obter financiamento na banca, como para pagar menos impostos
- Há ainda uma suspeita de violação, levantada por uma jornalista, E. Jean Carroll, que em Fevereiro de 2023 vai chegar a tribunal. Não com Trump formalmente acusado de violação (porque não está), mas antes com o ex-Presidente como queixoso, num processo por difamação apresentado contra a jornalista. No entanto, daqui podem sair revelações potencialmente lesivas para Trump que, no limite, podem dar força às alegações da jornalista, agravando o caso
Trump ainda pode voltar a ser Presidente dos EUA perante todos estes casos?
Pode. Todas estas investigações prometem arrastar-se por muito tempo e nenhuma oferece garantias de condenação, pois estão em causa crimes em que a prova é extraordinariamente difícil e complexa, e a defesa do ex-Presidente pode gastar anos em recursos.
Nada impede Trump de candidatar-se a meio de um julgamento. E, por estranho que possa parecer, nada impede Trump de candidatar-se a partir da prisão. Mesmo que seja condenado, por exemplo, pelo crime de roubo ou destruição de documentos, que prevê a proibição do exercício de um cargo público, a Constituição norte-americana favorece o antigo chefe de Estado: é que as únicas exigências para ser-se Presidente são ser maior de 35 anos, ser um cidadão natural dos EUA (ou seja, nascido em território americano) e ter vivido 14 nos EUA. Nada se diz sobre condenações criminais, e nenhuma lei aprovada pelo Congresso pode mudar isso.
Nessa situação, em que há um conflito evidente entre a lei criminal e a Constituição, caberia ao Supremo Tribunal dos EUA o desempate. Dada a forma como a Constituição está redigida e dado que o Supremo é constituído maioritariamente por juízes de tendência conservadora, uma decisão a favor de Trump seria praticamente certa.
Uma vez na Casa Branca, ou mesmo como um inédito Presidente atrás das grades, Trump poderia nomear um novo procurador-geral instruído de travar os processos judiciais em curso. Trump só não poderia fazer uma coisa: conceder a si próprio um perdão presidencial.
Por fim, e tendo em conta as declarações da maioria dos dirigentes republicanos na última semana, Trump continua por estes dias a contar com o apoio do seu partido e mesmo, de acordo com as sondagens, com o apoio da maioria do seu eleitorado, que vê as acções do FBI como ilegais.
No entanto, também é fácil imaginar que passar os próximos anos em tribunal ou, no limite, na cadeia, poderá desgastar a imagem de Trump junto de muitos dos seus eleitores. Os acontecimentos da última semana podem ter dado um empurrão decisivo a outros potenciais candidatos presidenciais do Partido Republicano - sobretudo a Ron DeSantis, o actual governador da Florida, ideologicamente muito próximo de Trump, mas mais disciplinado e sem os empecilhos legais do antigo Presidente.
Mas como Trump nos vem mostrando desde 2016, o melhor é não fazer apostas.
Boa semana!