Salman Rushdie já respira sem ajuda de ventilador — “O caminho para a recuperação começou”
Agente do escritor diz que “ferimentos foram graves mas o seu estado evolui na direcção certa”. Filho garante que sentido de humor do autor “continua intacto”. Biden manifesta “solidariedade” com escritor. Índia mantém silêncio. Os Versículos Satânicos começam a surgir nas listas de mais vendidos.
O escritor Salman Rushdie já respira sem ajuda de ventilador e conseguiu falar, revelaram o seu amigo e também romancista Aatish Taseer, o seu agente Andrew Wylie e o presidente do centro cultural onde o autor foi atacado, durante a madrugada deste domingo. O autor, que foi esfaqueado dez vezes quando ia começar uma palestra na Chautauqua Institution, continua hospitalizado enquanto prosseguem as investigações sobre os motivos para o ataque do suspeito Hadi Matar, que sábado se declarou inocente de tentativa de homicídio. O seu filho, que falou este domingo ao New York Times, descreveu ainda assim que o pai está “em estado crítico”.
Em comunicado citado pelo diário New York Times, Zafar Rushdie adiantou que o pai conseguiu dizer algumas, poucas palavras, e que está ainda em vigilância intensiva.
“Embora os seus ferimentos, que são daqueles que mudam a vida de uma pessoa, sejam graves, o seu habitual sentido de humor desafiante e combativo continua intacto”, disse o filho, que agradeceu aos membros do público que saltaram para o palco em defesa do pai quando esteve foi atacado sexta-feira. Zafar Rushdie agradeceu ainda à polícia e aos médicos, bem como às demonstrações de apoio vindas de todo o mundo.”
A descrição feita por Zafar Rushdie acaba por corroborar a fonte da primeira informação disponível este domingo sobre o estado do autor de Josef Anton. “Acabei de receber notícias muito entusiasmantes: ‘Salman está sem o ventilador e a falar (e a dizer piadas)…”, escreveu Aatish Taseer no Twitter, num post que entretanto foi apagado. Vários órgãos de informação garantiam na altura que a notícia das suas relativas melhoras fora confirmada pelo agente de Rushdie, Andrew Wylie, sem que este tenha avançado mais detalhes.
Ao início da tarde deste domingo (manhã nos EUA), Andrew Wylie detalhou num email enviado à agência Reuters que “ele saiu do ventilador, portanto o caminho para a recuperação começou. Vai ser longo; os ferimentos foram graves mas o seu estado evolui na direcção certa”.
Também Michael Hill, presidente da Chautauqua Institution, partilhou as melhoras de Rushdie no Twitter. Aatish Taseer deu uma entrevista ao canal indiano NDTV dizendo-se “escandalizado” por a Índia, país onde Rushdie nasceu (o autor tem agora também nacionalidade norte-americana) não ter sequer emitido um comunicado sobre o ataque.
A Índia foi o primeiro país a banir Os Versículos Satânicos em 1988, o livro que muitos muçulmanos consideraram blasfémia e que o Irão em particular tornou em pretexto para a fatwa que pede a morte do escritor desde 1989.
O governo ou os partidos indianos, num país que vive um fim-de-semana prolongado, não condenaram o ataque a Rushdie, mas Natter Singh, o ministro dos Negócios Estrangeiros na altura em que o livro foi banido, falou no sábado à agência Press Trust of India para dizer o que aconselhou à época ao primeiro-ministro Rajiv Gandhi: “Toda a minha vida fui totalmente contra banir livros, mas quando se trata da lei e da ordem, mesmo um livro de um grande escritor como Rushdie deve ser banido. Todo o mundo muçulmano vai inflamar-se. Temos um grande número de muçulmanos [no país] e além disso, o que o livro contém não é aceitável nesta altura.”
Salman Rushdie nasceu na Índia numa família de cultura muçulmana e estudou depois no Reino Unido, primeiro na Rugby School, depois na Universidade de Cambridge e radicou-se em Inglaterra, mas viveu brevemente no Paquistão, para onde a sua família se mudou após a criação do país — república islâmica que também se mantém em silêncio perante o caso. Vive desde o ano 2000 nos Estados Unidos.
Entretanto, quem juntou a sua voz à de António Guterres, secretário-geral da ONU, ou de Emmanuel Macron, presidente de França, foi o Presidente dos EUA Joe Biden, que nas últimas horas de domingo emitiu um comunicado sobre o ataque a Salman Rushdie.
“Verdade. Coragem. Resiliência. A capacidade de partilhar ideias sem medo”, elogiou o chefe de Estado norte-americano, para quem o autor de Os Filhos da Meia-noite (1980), O Último Suspiro do Mouro (1995) e O Chão que Ela Pisa (1999) é um autor que simboliza “ideais essenciais e universais”. Joe Biden disse ainda que as características de Rushdie “são as pedras basilares de qualquer sociedade livre e aberta. E hoje, reafirmamos o nosso compromisso com esses valores profundamente americanos em solidariedade com Salman Rushdie e com todos os que defendem a liberdade de expressão”.
No mesmo espírito, o Alto-Representante para a Política Externa e de Segurança da UE, Josep Borrell, condenou fortemente o ataque, considerando que “a rejeição internacional” deste tipo de crimes “é a única via para um mundo melhor e mais pacífico”.
Entretanto, Os Versículos Satânicos reemergiram nas listas dos mais vendidos de algumas livrarias online, como é o caso da Amazon, onde se encontra em 12.º lugar, na Apple Books está em 7.º e na livraria norte-americana Barnes & Noble está mesmo em segundo lugar. As livrarias portuguesas com sites de vendas ainda não revelam a mesma tendência, com dados menos actualizados também.
A incógnita Hadi Matar
Sábado, mais de 24 horas depois do ataque, Hadi Matar, que várias testemunhas presentes na conferência no centro cultural no estado de Nova Iorque viram subir ao palco e esfaquear Salman Rushdie, foi presente a um juiz para ouvir as suas acusações e declarar ou não a sua inocência. Matar, acusado de agressão em segundo grau e tentativa de homicídio em segundo grau, declarou-se inocente.
A sua defesa queixou-se de que o suspeito foi “deixado preso a um banco” durante horas e que lembrou que ele tem direito à presunção de inocência. Os procuradores que conduzem a sua acusação revelaram o número de vezes que o autor foi esfaqueado — dez, algumas das quais causaram danos que podem ser irreversíveis ao seu olho esquerdo — e a alegada premeditação do crime. Hadi Matar, disseram, chegou de véspera ao local, comprou bilhete para aceder à palestra e usou como identificação uma carta de condução falsa.
Continuam também a emergir mais detalhes sobre Matar, quanto a quem ontem especialistas em extremismo garantiam ser de origem libanesa e até simpatizante do grupo armado Hezbollah. O autarca da aldeia de Yaroun, no sul do Líbano, confirmou à agência de notícias Associated Press que Matar nasceu nos EUA depois de os seus pais libaneses para lá terem emigrado. O diário britânico The Guardian descreve que os jornalistas que sábado tentaram visitar a aldeia foram convidados a sair, mas que estavam visíveis bandeiras do Hezbollah, xiita e apoiado pelo Irão, bem como retratos dos ayatollahs que lançaram e reforçaram a fatwa, entre outras figuras. Sábado, o Hezbollah disse nada saber sobre este ataque. Hadi Matar não terá ainda revelado a motivação para agredir Salman Rushdie.