Por incrível que pareça, não é uma novidade lá fora. Há vinte anos que se enchem latas com vinho, pelo menos na Austrália. Mas o processo deu uma grande volta ao globo para em 2021 chegar a Portugal, onde são já vários os produtores a “enlatar”. Na sua maioria, vinhos brancos ou rosés, de baixo teor alcoólico e com algum gás, para consumir dentro de um ano.
O desafio veio dos mercados para onde as nossas empresas exportavam e onde a lata já era comum. As gerações Millennial e Z não querem saber do vidro e da rolha, querem conveniência e descomplicação. Os movimentos do “no-alcohol” e do “low-alcohol” (sem álcool e consumo moderado, respectivamente) e a preferência crescente por marcas sustentáveis ajudam a explicar o fenómeno.
Para a Quinta da Lixa, a alavanca foi o interesse vindo dos EUA, onde a lei proíbe andar na rua com uma garrafa de vinho aberta mas permite o consumo se este for em lata. “É um mercado que já há muitos anos nos solicitava este tipo de produto. Começámos a enlatar vinho no início de 2021. Somos a primeira empresa da região a lançar um vinho em lata com Indicação Geográfica [Minho]. A legislação ainda não permitia que o Vinho Verde [Denominação de Origem] fosse embalado em lata. Assim que isso mudou, começámos a fazê-lo com a DO Vinho Verde”, explica o enólogo Carlos Teixeira.
O produtor de Amarante começou por encher “cerca de 26 mil latas”, em 2022 quase duplicará esse número e, se em 2023 chegar às 150 mil latas, no ano seguinte estima encher “250 mil latas”. Para já, com um branco, entrada de gama – Anjos de Portugal nos EUA, Terras do Minho no mercado nacional. Das vindimas deste ano sairá o rosé que em 2023 chegará ao consumidor também em lata.
Depois dos EUA, vieram outros mercados. E as vendas continuam a fazer-se sobretudo lá fora. Por cá, o verão trouxe “abertura em alguns nichos no mercado nacional: festivais de verão, idas à praia, festas junto à piscina”, conta Carlos Teixeira.
A Adega Mãe, na região Lisboa, fez “o primeiro ensaio em 2020, com o vinho de 2019: o primeiro enchimento foi pequeno, 10 mil latas”. “Temos alguma presença no mercado norte-americano e começámos a perceber, nas imensas viagens que fazíamos, que as prateleiras de vinho em lata estavam a crescer nos EUA.” Hoje em dia, a Adega Mãe enche “à volta de 100 mil latas por ano”. Com a referência Pinta Negra – entrada de gama e o vinho mais vendido da empresa, em garrafa, bag-in-box e agora lata –, branco e rosé, “e uma lata [desenhada] em exclusivo para a rede Lidl, White Blend e o Rosé Blend”. “É no mercado interno onde estamos a ter maior sucesso, à conta dessa unidade”, revela o enólogo Diogo Lopes.
A Niepoort, com quintas em três regiões vitivinícolas e reconhecida pela sua cultura de experimentação, já tinha feito o Defio Nat Cool Baga Clarete (Bairrada) com a dupla Ana Sofia Oliveira (The Wine Agency) e Sara Rodrigues e Matos (The Wine House). Uma edição limitada e numerada, da colheita de 2020, na Quinta de Baixo, enlatada em 2021. Agora, o espírito irrequieto de Dirk Niepoort anda a experimentar com um branco turvo dos Vinhos Verdes, uma parceria com Anselmo Mendes. “Temos um Nat Cool branco Vinho Verde turvo. Ou fazíamos turvo ou não fazíamos. [Com este vinho] A ideia é experimentar em condições estúpidas – muito frio e muito calor. É um lote de Alvarinho, Loureiro, um pouco de tudo, não filtrado e que faz a segunda fermentação em lata. É diferente de tudo o resto. Foi enlatado há ano e meio. Ando a passear esta lata há um ano e ela está boa. Tem 4,5 por cento de álcool”, contou o produtor ao Terroir.
Porto também vai bem com lata
A The Fladgate Partnership, outra empresa com a inovação no DNA, investiu numa linha de enlatamento própria, em Vila Nova de Gaia, para lançar no final do primeiro semestre de 2021 o Taylor's Chip Dry & Tonic e o Croft Pink & Tonic, bebidas que já misturam os dois Portos de categoria especial com água tónica. A sua própria água tónica.
“Quando nos apresentaram o projecto, pensei: é simples, temos vinho do Porto e compramos a água tónica. Não, tínhamos de fazer a nossa água tónica. Foi um trabalho de dois anos a afinar o blend. O maior desafio da equipa de enologia foi a água tónica”, conta a enóloga Joana Furriel. As que existiam no mercado eram “muito doces” para misturar com vinho do Porto, entendeu a equipa de enologia do grupo, e não permitiriam chegar à mistura “perfeita”. Além da água tónica, que agora está à venda no World of Wine, do grupo, faria toda a diferença a bolha certa: “uma bolha fina, persistente e delicada”, como a descreve a directora de produção, Maria de Lurdes Almeida, que já instalou uma segunda máquina de enchimento e já estuda a automatização da linha de enlatamento.
“Depois de o produto estar pronto, foi toda uma pesquisa de como o enlatar. A junção é feita no armazém de vinhos prontos. Vem para aqui para enlatar. E tem de estar nas condições de temperatura ideais”, partilha Joana Furriel, e mais não nos pode dizer. Segredos de um negócio que vai bem lançado para atingir o objectivo dos dois milhões de latas nos primeiros dois anos.
Outro grupo a enlatar vinho do Porto, mas não só, é a Sogrape. “Arrancámos com lançamentos em Abril de 2021, sendo actualmente a nossa oferta composta por Gazela Branco e Rosé e Offley Clink Portonic Branco e Rosé. Neste momento, já vendemos mais de 50 mil latas de Offley Clink Portonic entre Portugal e Bélgica. No acumulado a Junho, Gazela já vendeu 180 mil latas, mas a expectativa para este ano é mais do que duplicar o volume do ano passado. Mateus está também já em fase piloto em alguns mercados com o seu Rosé Original em lata”, partilhou, por email, Raquel Seabra, administradora-executiva da empresa.
“Este formato, pela sua facilidade de transporte e de refrigeração, permite consumir vinho em novos momentos”, tem permitido conquistar “novos consumidores” e tem “uma pegada carbónica reduzida”, sublinha a responsável da Sogrape. Raquel Seabra diz que “os primeiros sinais” são de tal forma “positivos” que a empresa está para lançar várias referências de “outras marcas neste formato mais descontraído, prático e inovador, nomeadamente um Portonic da Sandeman para breve”.
E o vinho é o mesmo?
Quinta da Lixa e Adega Mãe são dois dos muitos produtores que, estando ainda a tactear a nova tendência, recorrem aos serviços de linhas móveis de enchimento. O CEO da Wine on Wheels, uma das duas empresas portuguesas que prestam o serviço e o distribuidor do segundo maior fabricante mundial de latas para bebidas, explica o desafio técnico. Conta Joaquim Carvalho que a gigante Ardagh desenvolveu uma lata em alumínio específica, com “um revestimento epóxi no interior”. E que o vinho tem de obedecer a determinados parâmetros para ir para a lata. O próprio fabricante das latas assim o exige.
“Não pode ultrapassar determinado nível de sulfuroso, porque este revestimento epóxi é sensível ao sulfuroso. Como com o pH, que define a acidez do vinho. Também há um limite, mas os nossos vinhos adaptam-se. A lata tem de ter níveis de oxigénio baixos, mas não muito baixos. Se tiver níveis muito baixos, o vinho reduz e fica com aromas negativos. Com níveis mais altos de oxigénio, oxida. A lata é um produto muito técnico”, explica o engenheiro mecânico há mais de 30 anos no sector dos vinhos.
Tintos não? Até aqui, o vinho tinha de “levar uma injeção de CO2 [dióxido de carbono] para conferir resistência à lata, criar ali uma espécie de parede”; sem isso, o alumínio “super-fininho” podia “amolgar e até furar”, refere o enólogo Diogo Lopes. Que atira: tintos com “gás choca um bocadinho”. Mas com a nova geração de máquinas de enchimento já é possível “enlatar” tintos sem esse fizz.
Joaquim Carvalho confirma. Na sua primeira unidade móvel, a Wine on Wheels só conseguia encher vinhos carbonatados. Mas, como rapidamente percebeu que a tendência tinha chegado para ficar, investiu noutra, já em 2022, que permite encher todo o tipo de vinhos. O grupo leva unidades móveis de enchimento a “700 clientes” no sector do vinho, em Portugal e Espanha, e “o enchimento em lata não ultrapassará os 4%”, mas o filão “está a crescer”.
Se olharmos ao preço por litro, o vinho em lata sai mais caro. Mas a principal razão que leva à compra não é, como lemos, o preço. Os tempos mudaram e com eles também os produtos. Ou o seu embrulho, como neste caso.