Aceitar algo de mau para receber algo de bom
Passado e presente fornecem-nos pistas para a maneira como encaramos o futuro. Mas, para isso, é preciso que estejamos dispostos a ouvi-los.
Há dias, ao vasculhar as gavetas da secretária à procura de uma fotografia, encontrei uma caixa cheia de blocos de notas de todo o género e feitio, a esmagadora maioria pouco maiores que um telemóvel, ou seja, suficientemente pequenos para caberem no bolso das calças ou do casaco. São blocos que dormiram à minha cabeceira, que me acompanharam em viagens, caminhadas, sestas, em idas ao supermercado ou ao banco, ao futebol, à praia e ao campo, enfim, a todo o lado. Algumas folhas estão datadas, outras não, umas estão escritas de uma ponta à outra, outras mostram apenas uma frase ou tão-só duas ou três palavras avulsas.
Despejei os blocos em cima da mesa. Que aventura: a minha caligrafia é difícil de entender, muitas vezes até para mim próprio, sobretudo quando a excitação de uma ideia me apressa — quem conhece a sensação de deixar escapar uma ideia, aquela ideia!, por não ter onde a apontar, perceberá o conceito de “escrita urgente” —, muitas vezes com o bloco apoiado numa perna ou numa parede ou em lugar nenhum.
Nestas circunstâncias, confesso, é elevadíssima a probabilidade de qualquer palavra escrita por esta mão nascer sob a forma de um gatafunho. As folhas estão repletas de emendas, cruzes, frases incompletas, frases começadas no cimo da página e interrompidas a meio por outras palavras ou devaneios e que continuam num asterisco no fim da folha ou na página seguinte. Há pensamentos, histórias, ideias, excertos de livros, acontecimentos, incidentes, lições, enfim, há de tudo um pouco nestes blocos de notas.
Adoro ler notas antigas. Amiúde descubro nas minhas palavras um sentido que não captara ou que não absorvera com clareza no instante em que as registei no papel. E é curioso observar como a nossa forma de olhar para o passado se vai alterando à medida que o tempo passa. Passado e presente fornecem-nos pistas para a maneira como encaramos o futuro. Mas, para isso, é preciso que estejamos dispostos a ouvi-los. O meu passado fala-me de viva voz nestes blocos, conta-me histórias sobre mim próprio, sobre o que fui e no que me tornei. São uma autobiografia de vários volumes com datas, rabiscos, frases completas e incompletas, palavras impercetíveis, palavras registadas numa caligrafia cuidada, enfim, variações de um mesmo tema, eu. Espelho da vida. Da minha vida. Ou, pelo menos, de parte dela. Somos o mundo que conhecemos e que recordamos.
O tempo parece abrandar enquanto leio os meus blocos. E não apenas pela dificuldade em decifrar a letra, a qual aceito sem reservas, acreditando nos tesouros escondidos nas mensagens, que, amiúde, me iluminam, mostrando-me caminhos ocultos até então.
Quando tinha cerca de nove anos, eu e o Zacarias, o meu melhor amigo, brincávamos ao berlinde na rua. Uma tarde, o Eurico, um adolescente nosso amigo, pediu-nos que o seguíssemos até ao quarto. Após um breve momento de silêncio, uma avalanche de berlindes pintou de mil cores a colcha branca que cobria a cama do Eurico. Olhei boquiaberto para o Zacarias, cujos olhos brilhavam, refletindo as cores das dúzias de berlindes. Certamente que os meus olhos estavam no mesmo estado. Nenhum de nós tinha alguma vez visto tantos berlindes juntos. Sempre muito mais expedito do que eu, o Zacarias esticou as duas mãos e apanhou um montão deles, enfiando-os nos bolsos. O Eurico disse-lhe que os voltasse a colocar em cima da cama. Repostos os berlindes subtraídos, o Eurico pegou num dos berlindes e disse: “Quem quer este?” O berlinde, avermelhado e de tamanho médio, tinha o vidro tão estragado e baço que nem reluzia. Percebi que não devia rolar mais de um palmo no chão, mas senti que se não dissesse algo, o seu destino seria o fundo de uma gaveta ou o balde do lixo. Eu e o Zacarias falámos ao mesmo tempo: ele para dizer, com desprezo, “Eu não quero isso!” e eu para afirmar, entusiasmado: “Quero eu!”.
O Eurico sorriu e entregou-me o berlinde.
— Muito bem, João, como prémio, vais ficar também com este.
E tirou do bolso o berlinde mais bonito que já alguma vez vi, um abafador com um entrelaçado de todas as cores do arco-íris. O vidro refletia a luz do sol que entrava pela janela e pintava uma ondulante aguarela na parede. Estendi a mão, hesitante, olhando de soslaio o Zacarias, que me observava com o sobrolho franzido.
— Obrigado.
— Mereceste-o. Já viste o que perdeste, Zacarias…
— Isso não vale! Isso assim não vale! — reclamou.
– Claro que vale, os berlindes são meus e faço com eles o que quiser — rematou o Eurico.
A distribuição continuou durante mais algum tempo, mas o ambiente estava azedado. O Zacarias manteve um semblante carregado e não abriu mais a boca. Aquilo afetou-me tanto que ponderei dar-lhe o abafador.
Saímos. Ainda nem tínhamos chegado ao portão que dava para a rua, o Zacarias disse-me baixinho: “Esse berlinde é uma merda”. Doeu. Primeiro pelo berlinde, pois ganhei-lhe afeição desde o primeiro momento, depois porque o meu amigo estava a tentar fazer com que me sentisse mal. Era meu amigo e doeu-me. Na altura, não tinha a maturidade ou o conhecimento necessário para perceber que o Zacarias estava arrependido. Tudo o que ele queria era ter ficado com aquele abafador lindo. Como não o ganhou, menosprezou o meu berlinde velhinho.
— Dou-te dez berlindes se me deres o abafador — disse-me.
Recusei, entre sorrisos, embora tenha ponderado aceitar a proposta. Não pelos dez berlindes que me daria em troca, mas simplesmente porque sabia que ele ficaria satisfeito e poderíamos continuar a brincar sem paz podre. Mas resisti. O Zacarias foi para casa e nem se despediu de mim. Quando cheguei a casa, guardei os novos berlindes (inclusive o abafador) onde tinha os outros, pousei o velhinho berlinde na mesinha de cabeceira e fui lanchar. Mais tarde, levei o berlinde para o banho. Lavei-o com sabonete, sequei-o e hidratei-o, tentando melhorá-lo. O berlinde não ficou muito diferente do que estava quando o recebi, mas senti-me bem a cuidar dele. Senti também orgulho em mim próprio. Não me senti melhor do que o Zacarias, nada disso, mas senti que ter aceitado o berlinde estragado tinha sido um ato de gratidão em relação ao Eurico, que do nada se tinha predisposto a dar-nos os berlindes. Hoje, sei que ao mostrar aquele berlinde estragado antes de todos os outros, ele estava a pôr-nos à prova. Sinceramente, teria preferido que o meu amigo não tivesse ficado chateado. Mas também sei que não o fiz por mal.
No dia seguinte, fui a casa do Zacarias. Chamei-o algumas vezes sem obter resposta. A situação repetiu-se nos dias seguintes. Cerca de uma semana depois, vi-o a entrar em casa e chamei-o:
— Zacarias! Zacarias!
Vi subir o estore da sala de casa do Zacarias e logo depois apareceu uma mãozinha a afastar o cortinado. Era a irmã. Sorriu-me e voltou a fechar o estore. Presumi que tivesse ido chamar o irmão. Não tirei os olhos da janela, mas uns cinco minutos depois, já farto de esperar, decidi ir-me embora. Assim que me voltei, ouvi a voz do Zacarias.
— O que queres?
Virei-me rapidamente. O Zacarias estava com a cabeça fora da janela, e percebi que estava de pijama.
— Estás doente? – perguntei, apenas para fazer conversa, pois tinha-o visto poucos minutos antes na rua e, naquela altura, era perfeitamente normal para alguns miúdos chegar a casa e vestir o pijama.
— Não.
— Olha, queres ir jogar ao berlinde?
— Eu já não jogo a isso.
Esta história é verídica e está num dos meus blocos. Quando a escrevi, intitulei-a “Um berlinde estragado”. Entre parênteses, logo abaixo do título, lê-se “aceitar algo de mau para receber algo de bom”. Uma mensagem do passado que foi importantíssima quando tive de lidar com um complicado problema de saúde. Esta abordagem exige treino — de forma alguma a cumpro na íntegra —, mas é uma excelente ferramenta de desenvolvimento da aceitação, da paciência, da adaptação às situações, do controlo das expectativas e, sobretudo, da perceção de que a ditadura do julgamento impede que vejamos que tudo isto, e mais uma imensidão de coisas, fazem parte da vida.