Avesso, afinal o nome não diz tudo
Ainda é para entendidos, dizem produtores e enólogos, que confiam que mais tarde ou mais cedo “a casta mais distinta dos Vinhos Verdes” dará o grande salto.
“Em qualquer parte do mundo seria um grande vinho”, acredita Anselmo Mendes, que coloca o Avesso entre as três castas mais importantes da região dos Vinhos Verdes. E isso, para o “Senhor Alvarinho”, é dizer muito. É difícil na vinha e na adega, sim, porém o seu nome (que significa “mau”, “oposto ao que deve ser”) não diz tudo, como é comum ouvirmos.
Na fronteira com o Douro, em particular na sub-região de Baião, a casta está muito bem adaptada e dá origem a brancos frescos e mais encorpados. Para António Sousa (AB Valley Wines), enólogo que começou a trabalhar o Avesso em 1999, acabado de sair da faculdade, é “uma das grandes castas brancas portuguesas” e “é uma casta de berço”. Tony Smith (Quinta de Covela) destaca o seu “belo equilíbrio entre acidez e estrutura”, “um plus quando se fala de envelhecer o vinho”. E o enólogo Diogo Lopes (Cazas Novas) acredita que a uva “tem tanto potencial de fazer grandes vinhos como o Alvarinho”.
Com tal ramalhete de elogios, porque não ouvimos nós falar mais da casta?
"A mais distinta dos Vinhos Verdes"
Na transição entre as regiões dos Vinhos Verdes e do Douro, Anselmo Mendes, que tem o centro da sua operação mais a Norte – com 50 hectares de Alvarinho próprios e 70 de Loureiro alugados –, controla e compra uvas de Avesso a produtores que totalizam 50 hectares na zona de Baião. Um desses parceiros é a família Coutinho, que sempre produziu uva e tem 25 hectares de Avesso em Santa Marinha do Zêzere, em patamares com vista de Douro, porventura a maior mancha daquela variedade na região. Anselmo Mendes já trabalha em Baião desde 2006, é onde faz o mosto, depois vinificado em Melgaço. “É uma das três castas mais importantes da região, aquela que tem maior acidez e praticamente só na sub-região de Baião atinge um excelente equilíbrio acidez/álcool”, explica.
Sem epítetos que o amarrem, António Sousa classifica o Avesso como “a mais distinta das castas dos Vinhos Verdes”. “Nós sabemos o que é. O mercado começa agora a descobri-lo.” O enólogo já era consultor – e continua a sê-lo – antes de criar em 2016, com o sócio Bernardo Lencastre, a AB Valley Wines, uma empresa “para servir os pequenos e médios produtores” de uva. Têm uma equipa com sete enólogos e dão apoio a cerca de 35 empresas. Ao todo, vinificam perto de 60 marcas, em toda a região, incluindo os seus vinhos Abcdarium. “Nem toda a gente faz Avesso, mas há alguns produtores a fazer. Até porque eu aposto na casta, junto com o Azal, que tento ter nos sítios certos. Vejo que quem tem Avesso percebe as dificuldades, mas apaixona-se por ele.”
E quais são os sítios certos? “Terrenos não demasiadamente férteis, preferencialmente bem arejados. Se tiver muito vigor, desavinha muito e torna-se menos produtiva”, explica o responsável da AB Valley Wines, de cuja adega saem 4,5 a 5 milhões de garrafas por ano. Bagos pequenos, mas concentrados, escondidos por uma folhagem exuberante, que funciona como um pau de dois bicos: se abundante não permite o arejamento que o Avesso pede, se mais despida há o risco de escaldão, a que a casta é sensível. Precisa então “de muita intervenção em verde, do abrolhamento à vindima. É preciso estar sempre a suprimir lançamentos ou folhas a mais, despontar, orientar”, completa Anselmo Mendes.
Na Quinta de Guimarães, onde a família Coutinho tem a maior parte dos tais 25 hectares de Avesso, e de onde saem uvas para os Avessos de Anselmo Mendes e para a marca Cazas Novas – numa sociedade que Carlos Coutinho, sétima geração, tem com o enólogo Diogo Lopes e outros dois sócios –, substituiu-se na década de 1980 um grande olival pela Vinha da Miséria. “É curioso porque é das mais férteis que temos, a terra é muito boa. Já tínhamos Avesso. Mas nesta primeira plantação o meu pai plantou sobretudo brancos – Avesso e Arinto – e algumas tintas”, enquadra Carlos Coutinho. “O Diogo começou a trabalhar connosco e, entre 2015 e 2018, replantámos quase todas as vinhas. Optámos por especializar-nos no Avesso”, continua o gestor.
Revolução lenta procura acelerador
“Nós já fazemos a sua apologia há muito tempo, mas é para quem conhece”, diz Anselmo Mendes, que conhece a casta desde o tempo em que era enólogo da Borges, no final dos anos 1980. “O Avesso que exprime este terroir precisa de algum tempo. É bastante austero quando é novo. Não é amor à primeira vista.” Pressente-se, pelo rumo da conversa, que vem aí um “mas...”: “Primeiro tem de cativar os especialistas, depois os consumidores. Se não for explicado, as pessoas não gostam, mas é um vinho único, que dá que pensar.” Pondo em perspectiva, “pôr essa revolução em marcha passa também por trazer [para o Avesso] as grandes empresas”.
Algo que estará já a acontecer, mas a passo lento. Conversámos com Carlos Teixeira, enólogo da Quinta da Lixa desde 1999, no Monverde Wine Experience Hotel, sub-região do Sousa. Nos 30 hectares da Quinta de Sanguinhedo, onde fica o hotel, dez são de Avesso. Perto, a empresa tem 117 hectares de vinha, em sete propriedades, incluindo outra vinha de Avesso: oito hectares plantados há dois anos, a que se somarão em breve outros quatro. A casta sempre fascinou o enólogo, que plantou a primeira vinha em 1999, a tal no Monverde.
O Avesso está a solo em três referências da Quinta da Lixa lançadas este ano, para mostrar “a plasticidade” da casta: um Avesso de 2016 que estagiou em inox, com bâtonnage constante, e foi engarrafado em 2021; um curtimenta de 2018; e um Avesso de cinco colheitas diferentes, 2016 a 2020. A casta está também a alavancar a área de enoturismo: na Quinta de Sanguinhedo, a primeira colina do Avesso deu nome às suites e à Casa, unidades que em 2019 aumentaram a capacidade do Monverde. “Toda essa nova parte nasce por causa desta vinha”, sublinha o enólogo. Em breve, na vinha mais jovem de Avesso, a cinco minutos de jipe do hotel, “vai nascer também uma adega boutique, onde serão feitas as edições limitadas”.
Quando se fala de Avesso, entre conhecedores, o primeiro nome que vem à ideia de muitos é o da Quinta de Covela. Tony Smith e Marcelo Lima foram dos primeiros produtores na região a acreditar nos vinhos de terroir e trabalham o Avesso “desdobrado em várias referências” desde o início do seu projecto em São Tomé de Covelas, Baião, em 2011. “A Covela ficou conhecida nos anos 1990 e 2000 pela sua mistura de castas, Gewürztraminer, Chardonnay e Viognier [nos brancos], nos tintos Cabernet Sauvignon. Nós achávamos que o Avesso, sendo daqui, era mais importante. A vantagem do vinho português lá fora é ter castas que mais ninguém tem, sobretudo quando as castas são boas”. Como é o caso ali, acredita, e nas vinhas da Fundação Eça de Queiroz, que também gere.
A Covela tem 36,5 hectares de área total, 15 de vinha, 7,5 de Avesso, solos graníticos e um anfiteatro natural que garante boa exposição solar, numa geografia colada ao Douro mas onde ainda chega a brisa do Atlântico. “Há uma fronteira de facto, pelo rio, a quatro quilómetros daqui. Marca o final de uma região e o início de outra. Nessa linha, acontecem duas coisas: muda o solo, deste lado, e do Dão ao Minho, é granítico, do outro é xistoso, e muda o clima – aqui ainda chega a influência do mar, para lá dessa linha já não”, conta Tony. Solo, clima e a mão do enólogo Rui Cunha dão origem a um Avesso “um pouco menos frutado e mais mineral”. As uvas da Covela “ficam maduras mais depressa” do que outras ali à volta, incluindo as da Fundação, a cinco minutos de carro e onde a vindima pode atrasar até dez dias.
Se Covela e Avesso são coisa de nicho, o Covela Avesso Natur – um vinho não filtrado, que Tony descreve como “o mais natural possível” – “é de supernicho”. A primeira edição, 2019, esgotou em duas semanas.
Para Anselmo Mendes, é “uma casta fabulosa”. Usa-a sobretudo para lote, por não conseguir vender mais, assume. Onde os seus Avessos têm mais sucesso é na casa especializada Fortnum & Mason, em Inglaterra, um mercado muito maduro. Compra mais de 200 toneladas da uva “promessa”, mas só faz “mais ou menos 10 a 15 mil garrafas” de monovarietal. Com as mesmas 200 toneladas podia fazer 150 mil garrafas, mas prefere usar o resto no Muros Antigos Escolha, onde o Avesso (40 por cento) aporta estrutura a um lote que tem também Loureiro e Alvarinho.
Talvez, e como aconteceu com outras castas portuguesas, a atenção lá fora (e cá dentro) de críticos, masters of wine e jornalistas especializados desperte o apetite dos tais grandes e de consumidores, mesmo que não-conhecedores, pelo menos interessados. Esse movimento também começa a desenhar-se: em Maio, o Avesso esteve em destaque num artigo na Wine Enthusiast.
Com vista para o Marão e o Alvão
A variedade também se dá bem na fronteira com Trás-os-Montes. Do terraço da nova loja e sala de provas da Quinta da Raza, Diogo Teixeira Coelho explica o terroir onde a sua família produz vinho desde o século XVIII: à direita a serra do Marão; em frente, o Parque Natural e a serra do Alvão, e lá em baixo o Tâmega; ao longe, à esquerda, o Barroso. Nas nossas costas, as serras de Fafe, Viso e Lameira. “Uma cordilheirazinha que nos protege dos ventos do Atlântico.”
Na Raza (sub-região de Basto), só despertaram para o Avesso há uma década. Têm três referências num portefólio de 16 vinhos, 12 mil garrafas por ano num total de 700 mil. Só um é monovarietal, com uma frescura e uma estrutura que prometem “poder de guarda”. Esse “carácter sério” e longevo, à prova na última ProWein, valeu-lhes mais um mercado: Singapura gostou e comprou-lhes o Avesso.
A propriedade tem 45 hectares, sobretudo Arinto e Azal. De Avesso, apenas três hectares, em três vinhas distintas, a mais recente plantada há quatro anos. Porquê o Avesso? “Quem gosta de viticultura tem de ter Avesso”, responde Diogo, que gere a quinta de família desde os 18 anos.
A enologia está com o enólogo consultor Fernando Moura e com Pedro Campos, da sua equipa, mas Diogo sabe da poda de trás para a frente. “Temos solos de origem granítica, xistosos e argilosos, julgo ser uma mancha de solos rara. É muito favorável à cultura da vinha. E temos amplitudes térmicas grandes.” E o Avesso? “É uma casta exigente. É a primeira a rebentar, a florir, a colher, mas também é aquela em que aparecem primeiro as doenças.” Um “desafio”, portanto.
Envelhece bem, este branco
Garante quem a trabalha que a casta envelhece muito bem, com aromas a lembrar a amêndoa. “Começa ténue, é mais singela e com o tempo vai revelando o seu potencial”, descreve António Sousa. “Ganha com o tempo”, concorda Carlos Teixeira. A ideia da Quinta da Lixa, com a sua trilogia, é, de resto, apresentar o Avesso nas suas diferentes idades, “sendo que a idade lhe traz sabedoria – estrutura – e complexidade”, explica Carlos Teixeira. Para o enólogo, “o grande potencial de envelhecimento do Avesso começou a ser comprovado nos espumantes”.
Na Covela, Tony conta-nos como foi abrir recentemente uma garrafa de 2013, numa prova com um jornalista da Monocle. “Não tinha perdido a frescura, tinha mais corpo, estava superequilibrado, e com um fim de boca muito interessante. Sempre esse mineral e com essa amargura no final.”
“Se esta é uma casta de futuro e que pode ser de assinatura para a região? Sem dúvida”, aposta Carlos Teixeira. Aliás, tem “tudo o que precisa para ser um vinho de nível mundial”. E para ser um branco que nem é para o Verão nem para o Inverno. O Avesso não precisa de temporada ou de contexto para ser grande.