Maria sorriu

Crente de que a vida era algo mais do que servir e chorar, Maria investiu o seu futuro numa madrugada de trovoada, correndo, encharcada de lama e de esperança, leve e senhora do seu nariz, com o espelho na mão, em direção à estrada alcatroada que alimentava o sonho de risos e abraços e beijos e amor sincero.

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Maria subia com dificuldade a velha ladeira de calçada. Ofegante, parava a cada dois metros para respirar. As pausas deixavam-na ainda mais ansiosa por chegar ao topo e descansar no degrau. Cumpria este calvário, pelo menos uma vez por dia, há mais de cinco décadas. Custava-lhe cada vez mais a caminhar, mas nem queria ouvir pronunciar a palavra bengala, quanto mais apoiar-se nela.

Há alguns anos, no Natal, os voluntários de apoio aos desfavorecidos quiseram oferecer-lhe uma. “Uma terceira perna? Puta que vos pariu! Ainda por cima, cheira a defunto!”, resmungou. Todos sorriram. Maria tinha razão. O bordão pertencera ao falecido Patrício, velhote perna-de-pau que o usava para correr à paulada os pequenos salteadores de duas enormes e profícuas figueiras que escondiam a choça onde dormia aninhado com as vacas nas noites de inverno. Ninguém insistiu, todos conheciam a teimosia e o génio irado de Maria.

Com a passagem das primaveras, o arqueamento das pernas foi-se acentuando. “A dona Maria tem uma enfermidade que se chama doença de Paget”, diagnosticou o médico, já demasiado tarde para fazer resultar de forma eficaz qualquer tratamento. “Ó sotor, essa coisa da enfermidade ou lá o que é com nome estrangeiro é coisa que mate?” O médico respondeu-lhe que não, mas Maria sentia ser o princípio do fim. O dia em que não conseguisse andar pelo seu pé seria o dia da partida. Percebera-o aos primeiros sinais de rigidez das articulações e de cansaço excessivo.

Os sintomas desenvolveram-se lenta e subtilmente, manifestando-se em dor intensa, sobretudo à noite. Estendida na cama, Maria cumpria vigílias a mirar a cruz pendurada por cima da cabeceira. De vez em quando, sentia o aumento dos ossos a comprimir os nervos, deformando o esqueleto. “Já me dobraste mais um. Não tarda, vais tentar dobrar-me de vez, mas não penses que me deixo levar sem luta, maldita”, rabujava, com uma consciência mórbida da morte iminente.

Perdida nas memórias de pernas viçosas e vigorosas, Maria cedeu ao cansaço e o seu corpo mortiço resvalou para a calçada. A benfazeja interrupção da ascensão concedeu-lhe a bênção de uma inspiração profunda, tal qual faria se tivesse chegado ao degrau. Nenhuma mazela já a atormentava.

Maria passou a mão pelo rosto. As rugas haviam desaparecido e os lábios, finos, pálidos e cortados de pregas, recuperaram firmeza e suavidade. Maria semicerrou os olhos e acariciou a boca entreaberta, imaginando-se no quarto sem janela, mal iluminado pela chama fraca da velha lamparina, onde ensaiava, às escondidas, beijinhos e esgares provocadores em frente ao pequeno espelho de mão surripiado de casa da avó. Fechou os olhos e viu-se descalça a caminhar junto ao rio. A fresquidão da erva subiu-lhe pelas pernas e percorreu-lhe todo o corpo até à cabeça, onde se transformou numa brisa suave que brincou com os seus cabelos. A sensação de bem-estar proporcionou-lhe um breve instante de consciência da fragilidade da vida no seu extremo. Maria abraçou a verdade irrefutável da impermanência e, liberta de temores e arrependimentos, agradeceu a vida que findava e todos os dias que viveu, mesmo os vagos e incertos, amargos e penosos.

Tudo lhe faltara na vida e de nada sentira falta. Também de nada se arrependia. E que bem presente estava ainda a noite em que encontrou sentido para a vida no abandono da terra natal, escapando a um destino curvado aos castigos e à tristeza e onde a sobrevivência era o único propósito de cada inspiração.

Crente de que a vida era algo mais do que servir e chorar, Maria investiu o seu futuro numa madrugada de trovoada, correndo, encharcada de lama e de esperança, leve e senhora do seu nariz, com o espelho na mão, em direção à estrada alcatroada que alimentava o sonho de risos e abraços e beijos e amor sincero. Do topo da ladeira calcetada, observando o caminho percorrido, Maria sorriu.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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