Paula Rego (1935-2022), a mulher para quem a pintura vinha sempre primeiro

Aquela que era uma das mais internacionais e reconhecidas artistas portuguesas morreu esta manhã em Londres, aos 87 anos. Deixa uma obra múltipla e fortemente influenciada pela literatura, pelos contos populares e, sobretudo, pelas suas memórias.

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Paula Rego em 2007, em vésperas de uma retrospectiva dedicada à sua obra no Museu Nacional e Centro de Artes Reina Sofia, em Madrid Enric Vives-Rubio

Ouvi-la falar do que viveu, de como se tornou artista, dos livros que entraram pela sua pintura ou das histórias que transfigurou a partir dela (sobretudo a sua e a dos seus) era um privilégio, um prazer tantas vezes sujeito a surpresas. Mostram as suas entrevistas que Paula Rego chegava a ser de uma frontalidade desarmante, de uma honestidade quase infantil, passeando sem esforço ou desconforto entre o real e o imaginado, servindo-nos a cada desenho, a cada gravura, uma parte da sua memória, do que experimentara, do que vira ou do que durante tanto tempo escondera. Costumava dizer que era mulher, mãe e, em primeiro lugar, pintora.

Aquela que era uma das mais globalmente reconhecidas artistas portuguesas morreu esta manhã em Londres, aos 87 anos, na companhia dos seus três filhos, confirmou o PÚBLICO junto da família e de Catarina Alfaro, curadora-chefe da Casa das Histórias Paula Rego, o museu de Cascais dedicado a esta pintora que começou a trocar Portugal pelo Reino Unido quando em 1952 foi estudar para a prestigiada Slade School of Fine Art, em Londres.

Autora de uma obra que se espraia por diversas técnicas e suportes, fortemente influenciada pelo seu percurso pessoal, pela literatura e pelos contos populares portugueses e ingleses, Paula Rego está, a par de outra mulher, Maria Helena Vieira da Silva, entre os pintores portugueses do século XX de maior inscrição internacional.

Visibilidade tardia

Paula Rego fez a sua primeira grande exposição individual já tarde, em 1988, embora tenha começado a construir o seu universo singular, imediatamente identificável, ainda nos seus anos de formação na Slade, onde em 1954 recebeu o primeiro prémio da sua longa carreira. Um universo cheio de meninas perversas ou assustadas, de mulheres manipuladoras ou submissas, de homens frágeis ou dominadores, de seres fantásticos e inquietantes.

Pintora Paula Rego junto a um dos seus quadros Luis Vasconcelos
Paula Rego na sua exposicao no Museo Nacional e Centro de Artes Reina Sofia Enric Vives-rubio
Exposição na Casa das Historias Daniel Rocha
Centro de Artes Reina Sofia, em Madrid Enric Vives-Rubio
Exposicão no CCB Carlos Lopes
Adriano Miranda
Série " As Operas " de Paula Rego na Casa das Historias,
Casa das Histórias
Exposição Histórias & Segredos na Casa das Histórias Mário Cruz/LUSA
Montagem de exposição no Museu de Serralves, em 2004 Paulo pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Pintora Paula Rego no Museu de Arte Contemporânea de Serralves Paulo Pimenta
Paula Rego na montagem da exposição no Museu de Serralves Paulo Pimenta
Museu de Serralves Paulo Pimenta
Exposição na Casa das Histórias em Cascais Daniel Rocha
Fotogaleria
Pintora Paula Rego junto a um dos seus quadros Luis Vasconcelos

“As suas pinturas levam-nos numa viagem de vingança e auto-afirmação, à medida que as raparigas tomam o poder, caudas dos cães são cortadas, meninas pintam homens velhos, criadas pobres matam as suas patroas ricas e meninas vítimas de abuso são protegidas por um anjo, que por elas faz justiça”, escreve Elena Crippa, curadora das colecções de arte moderna e contemporânea britânica da Tate Britain, no texto que abre o catálogo de Paula Rego, a retrospectiva que se estreou em 2021 naquele museu londrino e que recentemente chegou a Málaga. “Não existe apenas dor ou raiva, mas também uma atitude maliciosa e subversiva que se delicia com o humor negro e as alusões atrevidas.”

Nascida em 1935, em Lisboa, filha única de um casal abastado, Paula Rego recebeu desde cedo uma educação anglo-saxónica a que não faltaram também, por influência do pai, os grandes escritores portugueses, a música erudita e o cinema. O pai é, aliás, uma das figuras que mais marcaram o seu percurso e a sua personalidade, um homem que, tal como ela, lutou contra a depressão e de quem a pintora dizia ter apenas “lembranças boas”.

“Era muito meu amigo, o meu pai”, disse ao PÚBLICO em 2017, no seu atelier londrino, numa tarde de conversa a semanas da estreia do documentário Paula Rego, Histórias & Segredos, realizado pelo mais novo dos seus três filhos, Nick Willing.

Este é o filme em que a artista o confronta pela primeira vez – e nos confronta – com episódios duríssimos da sua vida pessoal, como o primeiro encontro sexual com aquele que viria a ser o seu marido, o também pintor Victor Willing, os abortos que se viu obrigada a fazer quando ainda estudava na Slade, a forma como a afectou a depressão do pai, José Figueiroa Rego, ou a tentativa de suicídio do pai dos seus filhos, que viria a morrer em 1988, depois de ter vivido com esclerose múltipla por mais de 20 anos, os últimos dos quais confinado a uma cama.

“Toda a gente esconde coisas, em casa, no trabalho… E eu escondo no que pinto, nos bonecos. Escondo e não escondo, porque quando estou a pintar estou a mostrar, só que não se vê logo”, explicou Paula Rego nessa tarde no seu atelier.

Foi nesse mesmo ano de 1988, enquanto se despedia de Victor Willing, que a pintora preparou a sua exposição individual na Serpentine Gallery, em Londres. Rego e a família, que viveram na Ericeira entre 1957 e 1963, tinham fixado residência na capital britânica 12 anos antes.

Só na década seguinte, no entanto, é que a artista começou a ter o devido reconhecimento internacional, chegando a ser a partir daí apresentada como um dos mais importantes pintores ingleses vivos. Frequentemente exposta, em Portugal, nas fundações Calouste Gulbenkian e de Serralves, e em museus e galerias internacionais de relevo como o Centro de Arte Reina Sofia, de Madrid, Paula Rego tem entre as suas obras mais citadas S. Vomiting the Pátria, O Cadete e a Irmã, A Dança, e as séries Vivian Girls, Aborto, O Crime do Padre Amaro, Dog Woman e Possession.

Reconhecida em 2021 como uma das 25 mulheres mais influentes do ano para o Financial Times — ao lado de nomes como o da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, e da denunciante Frances Haugen —, a pintora encontrava-se actualmente num pico de visibilidade e reconhecimento internacional que a apresentação de Os Contos Cruéis de Paula Rego no Museu da Orangerie, em Paris, a importante retrospectiva da Tate Britain e, mais recentemente, a exposição internacional da Bienal de Artes de Veneza vieram sublinhar.

Para a única artista portuguesa convidada pela curadora Cecilia Alemani para integrar The Milk of Dreams foi reservada uma sala no pavilhão central dos Giardini, a sede da bienal, onde podem ser vistas oito grandes pinturas que falam de mulheres caídas em desgraça, de sedução, de violação e de infanticídio, e outra mais pequena com gravuras da série Nursery Rhymes. “Paula Rego tem uma sala monográfica muito importante na minha mostra. É uma artista verdadeiramente importante, e que há anos fala e trata de temáticas que não são populares, como o direito ao aborto e a liberdade de imprensa”, disse a curadora italiana ao PÚBLICO em Abril, na abertura da bienal.

“De vez em quando, o meu trabalho muda muito. Ele decide quando, e eu sigo”, dizia Paula Rego ao PÚBLICO, por email, em Julho do ano passado, aquando da inauguração da sua retrospectiva na Tate Britain, cujas salas percorreu com grande alegria, soltando gargalhadas, contaria ao PÚBLICO Nick Willing. “Alguns destes trabalhos são velhos amigos que não vejo há muitos anos”, disse a pintora que ainda saía de casa todas as semanas para trabalhar no atelier em Camden. “A mãe e as pinturas são a mesma coisa. Não há diferenças”, explicara o filho em 2017. Paula Rego concordava: “Primeiro a pintura.”

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