Durão Barroso diz que independência de Timor-Leste prova que “cínicos nem sempre têm razão”
Para o antigo chefe do Governo português, a soberania nacional “é um objectivo extremamente importante que não devemos subestimar, porque as pessoas querem ser donas de seu próprio destino. Portanto, isto em si mesmo é positivo”.
O antigo primeiro-ministro português José Manuel Durão Barroso disse nesta quinta-feira à Lusa que a independência de Timor-Leste, que completa 20 anos na sexta-feira, “demonstrou que os cínicos nem sempre têm razão”.
“Mais uma vez se demonstrou que é muito ténue ou estreita a linha que separa o realismo do cinismo. E também se demonstrou que os cínicos nem sempre têm razão e Timor-Leste foi a primeira nação, o primeiro país independente do século XXI e obviamente esteve e está confrontado com desafios bastante exigentes, mas a verdade é que provou, não apenas a sua viabilidade, mas também a indispensabilidade de ser reconhecido como país soberano”, salienta.
O antigo primeiro-ministro português evoca a “realpolitik” que marca as relações internacionais.
“É preciso ver de facto o contexto e pôr as coisas em perspectiva. Não podemos esquecer-nos que quando, por exemplo, estávamos a apoiar a ideia de independência, ainda quando Timor-Leste estava sob domínio indonésio, o sentimento comum, digamos assim, aquilo a que às vezes se chama a “sabedoria convencional” dizia que Timor não seria um país viável, e que não haveria ter qualquer razão para ele existir”, evoca.
“Isto dos círculos mais bem informados no mundo, que argumentavam com a chamada ‘realpolitik' recomendando a Portugal que desistisse dessa causa. Mais uma vez, se mostrou que os cínicos nem sempre têm razão”.
Durão Barroso referia-se aos apelos a Portugal para “deixasse cair a questão da independência de Timor-Leste”.
“Há algumas coisas que deixarei, se me permite, para as minhas memórias, mas há outras que posso já partilhar com total franqueza. A verdade é que Portugal e, em certa medida, os PALOP [Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa] estavam praticamente isolados nesta posição”, recorda.
“Os nossos aliados, incluindo os aliados mais próximos, aconselhavam-nos em privado a desistir da causa dizendo que não era realista, que a Indonésia era o maior país muçulmano do mundo. Que nunca aceitariam o princípio da autodeterminação de Timor-Leste e assim de seguida”, acrescenta.
Durão Barroso lembra que “muitos diziam que podiam apoiar [Portugal] na luta pela autonomia cultural, religiosa e linguística de Timor-Leste, mas que não seria realista apoiar a ideia de uma Independência”.
A democratização na Indonésia, destaca, contribuiu para mudar a posição de Jacarta.
“Houve uma democratização da Indonésia, e isso permitiu, como eu disse na altura, pormos o pé de maneira que a porta da Independência não fechasse. E a partir daí empurrámos a porta para que ela se abrisse e tive a honra de representar Portugal em três rondas sucessivas de negociações com o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia, Ali Alatas, infelizmente já desaparecido”, sob a égide do então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali.
“Foram momentos extremamente difíceis, de uma tensão enorme em que ele à partida não estava aberto a nada e teve a célebre frase, dizendo que para a Indonésia, Timor não passava de uma pedra no sapato. Ao que eu respondi que uma pedra no sapato, se demorar muito tempo pode provocar uma hemorragia e quem sabe até levar a própria morte, portanto que era melhor ele resolver ou ajudar a resolver”, continua.
As dificuldades por que passou a sensibilização internacional para a questão timorense levam Durão Barroso a socorrer-se de uma metáfora.
Renovação geracional
“Acho que se houvesse apostas, as casas de apostas não considerariam sequer possível a ideia de independência. Mas foi possível. É para isso que serve a política e a diplomacia: para tornar possível o que é necessário”, afirma.
Nestes 20 anos que Timor-Leste leva de independência Durão Barroso destaca a falta de renovação geracional da classe dirigente timorense, facto para o qual encontra uma justificação.
“Naturalmente, é sempre bom que haja alguma renovação, mas também se compreende a situação em Timor-Leste porque, ao fim ao cabo, é um momento fundacional não só de um regime, mas de um país, e por isso é de certa forma natural que aqueles que são vistos como os responsáveis, os líderes da independência durante algum tempo, mantenham esta posição de destaque no sistema político timorense”, declara.
Durão Barroso defende, todavia, uma renovação geracional.
“Resumindo, sem dúvida que é sempre desejável uma renovação de quadros políticos, mas também penso que é, de certa forma compreensível que Timor-Leste continue com a geração da independência”, salienta.
Num balanço dos 20 anos de soberania timorense, Durão Barroso vinca, naturalmente, a própria Independência, porque, diz, “representa um princípio fundamental, que é um princípio do Direito Internacional e de acordo com os nossos valores, que é o princípio da autodeterminação. Se um povo quer ser independente pode sê-lo em si mesmo”.
“Veja-se aliás, ainda que num contexto diferente, aquilo que se passa actualmente com a Ucrânia. Aqueles que diziam que a Ucrânia não era uma nação estão a verificar que estavam enganados. A soberania nacional “um objectivo extremamente importante que não devemos subestimar, porque as pessoas querem ser donas de seu próprio destino. Portanto, isto em si mesmo é positivo”, frisa.
“E em segundo lugar também é positivo que, apesar das dificuldades que são grandes, provou-se que há viabilidade económica para Timor-Leste. Assim haja competência para a administração do país”, acrescenta.
Quanto às dificuldades que nestas duas décadas identifica, Durão Barroso destaca “uma excessiva conflitualidade do ponto de vista político-partidário, às vezes até com contornos pessoais, que enfraqueceram alguns consensos que, sobretudo numa situação como a de Timor-Leste, seria imperativo consolidar”.
“Eu espero que haja da parte dos diferentes actores políticos timorenses a inteligência, a sabedoria para ultrapassarem essas dificuldades, porque quando pensamos o que o país sofreu para atingir a independência, seria uma pena que agora, por razões, que são ao fim e ao cabo secundárias, esses consensos fossem prejudicados”, defende.
A concluir, Durão Barroso evoca a emoção que sentiu quando a bandeira timorense foi hasteada na sede das Nações Unidas: “Recordo com emoção o momento em que ao lado do então Presidente de Timor-Leste, Xanana Gusmão, e do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, vi a bandeira de Timor-Leste a ser pela primeira vez içada na sede da ONU, em Nova Iorque”.