Licença menstrual: uma proposta a favor das mulheres ou contra a igualdade?
Ana estava no 7.º ano quando, pela primeira vez, sentiu dores incapacitantes. Apesar da falta de números concretos, as dores menstruais continuam a ser uma realidade para várias mulheres. Se uma licença menstrual chegar a Portugal, o que se pode esperar e que desafios éticos e morais poderá levantar?
“A memória que eu tenho é de estar no 7.º ano — quando me apareceu o período — e ser tão doloroso que tinha de sair da sala e ir para a enfermaria... Nem sequer conseguia ir para casa, não conseguia andar”, começa por contar Ana Almeida. A solução passava por ficar deitada numa maca “à espera que melhorasse”. Ao mesmo tempo que sofria, Ana, com 12 anos, ainda tinha que lidar com comentários e olhares de troça: “Toda a gente perguntava o que se passava e, de repente, o assunto tornava-se público. Os rapazes, claro, começavam a rir e a gozar”.
Face ao projecto de lei apresentado e votado recentemente em Espanha, a guionista, agora com 46 anos, voltou a analisar aquilo por que passou. “Quando vi a notícia da licença pensei que teria feito sentido para mim.” As hemorragias com grande fluxo e as “dores horríveis” que sentia duravam cerca de três dias e eram “muito incapacitantes”. “Ficava mesmo KO”, recorda.
A proposta, que ainda terá de ser aprovada no parlamento espanhol, inclui, como principais medidas, a possibilidade de abortar a partir dos 16 anos sem necessidade de autorização dos pais e uma licença para menstruações incapacitantes.
A ginecologista Irina Ramilo, autora da página A ginecologista da melhor amiga, no Instagram, esclarece que “pode haver algum desconforto ou alguma dor” durante o período menstrual. Porém, “não é normal existir uma dor intensa que persiste e que pode diminuir a qualidade de vida da mulher, impedindo-a de manter uma actividade laboral”.
Foi o caso de Ana, que nem quando chegou ao mundo do trabalho viu a sua situação melhorar. “Lembro-me de ter que dizer ao meu chefe – que era homem – que tinha de sair porque não aguentava com dores menstruais. E ele ficava a olhar para mim. Era uma situação tão confrangedora que ele aceitava e deixava-me ir, simplesmente.”
A guionista, que diz não ter “nenhuma situação clínica em particular”, limitava-se a sofrer e a aguentar. Mas as dores na zona pélvica eram tão intensas que, por vezes, nem com ibuprofeno abrandavam.
A dor “é sempre subjectiva”
“Nós não conseguimos medir a dor; é sempre subjectiva”, assegura a médica. Irina Ramilo continua: “É algo difícil de avaliar; não há dados concretos. Mesmo em consulta, tentamos aplicar escalas, mas há diferentes escalas, todas com vantagens e desvantagens”. E acrescenta: “Se nos exames conseguimos ver [o problema], sabemos que sofre de dor menstrual incapacitante e precisa de ter uma licença”.
O momento em que Ana Almeida realmente compreendeu a dimensão da sua dor foi depois de ter filhos, porque percebeu que o que sentiu ao dar à luz era facilmente comparável às dores menstruais que sentia regularmente.
Mas nem assim explorou a sua condição. “Não cheguei a ir ao médico, mas se calhar devia ter ido, na altura… Eu achava que era banal, que era assim, que nem era valorizado ao ponto de ir ao médico.” A situação só acalmou quando se tornou sexualmente activa e começou a recorrer a contraceptivos, que lhe deram “mais qualidade de vida” e lhe tiraram as dores — mas também a menstruação.
Licença menstrual é sinal de mais desigualdade?
Ao imaginar a implementação de uma licença menstrual em Portugal, são várias as questões que assolam a ginecologista Irina Ramilo: até que ponto vão existir regras para estabelecer a licença? Basta ser mulher e ter dor? Como se define a licença e qual a sua duração?
A par destas surgem também preocupações éticas e morais. “A verdade é que pode haver más intenções e situações fraudulentas… Mesmo a nível do feminismo, surgem questões. Será que vamos ter mais dificuldades laborais? Haverá mais desigualdade entre géneros?”, questiona.
Também o direito a decidir sobre o uso (ou não) de um método contraceptivo pode acabar por ser afectado, explica a especialista. Tudo depende se, como resposta à dor que sente, “a mulher quer fazer tratamento ou não” (no caso de existir), e se antes desse “quer fazer, primeiro, medicação analgésica ou alguma contracepção”.
Apesar de todas as questões ou incertezas que uma licença menstrual pode desencadear, a sua implementação “pode ser importante”, surgindo como alternativa às declarações médicas ou ao uso de dias de férias. “Deve ser dada? Se houver regras e limites, sim, deve”, defende a médica.
A opinião da Sociedade Portuguesa de Ginecologia (SPG), coincide com a da ginecologista Irina Ramilo. “A SPG apoia este tipo de medida, desde que devidamente enquadrada e justificada. Há que ter o cuidado que nem todas as dores menstruais justificam a ausência do trabalho”, explica Margarida Martinho, secretária geral da organização.
Para Ana Almeida, a ideia de existir uma licença provoca um “sentimento misto”, já que é preciso “admitir que as mulheres têm uma fragilidade biológica que acontece todos os meses”. No fundo, com a licença, “há uma coisa privada que se torna pública”. “Mas estamos a legitimar, ao mesmo tempo, uma particularidade das mulheres.”
Quantas mulheres sofrem em Portugal?
Não há números que representem a realidade portuguesa no que toca às mulheres em idade reprodutora que sofrem de dores menstruais ou doenças que as provoquem, diz Margarida Martinho. No entanto, “é um facto que este é um problema que tem grande impacto na qualidade de vida da mulher”.
O país vizinho, no entanto, apresenta valores. A secretária de Estado de Espanha para a Igualdade, Ángela Rodriguez, divulgou que “53% das mulheres sofrem de menstruação dolorosa e, entre as mais jovens, essa percentagem chega a 74%”.
Esta menstruação dolorosa pode surgir devido a patologias concretas. A ginecologista Irina Ramilo destacou cinco que têm impacto no período menstrual das mulheres: endometriose, adenomiose, dor pélvica crónica, doença inflamatória pélvica e síndrome dos ovários poliquísticos.
A primeira é “a que mais dor dá, de zero a dez, 12”, simplifica. Na endometriose, o tecido que reveste o interior do útero (chamado endométrio) é encontrado fora dele, normalmente nos ovários. Esta é uma doença crónica e sem cura. De acordo com a secretária-geral da SPG, “a endometriose afecta pelo menos 10% das mulheres portuguesas em idade reprodutora”.
Já a adenomiose é uma alteração uterina que, explica a ginecologista, difere da condição anterior. “Efectivamente, surgem muitas vezes associadas, mas são diferentes.” Nesta doença as paredes do útero tornam-se mais espessas, podendo provocar dor, sangramento e cólicas fortes. Pode ser curada, mas para isso acontecer é necessário remover o útero, esclarece a médica Irina Ramilo.
A dor pélvica, por sua vez, traduz-se numa dor intermitente ou constante que se sente abaixo da zona do umbigo e pode provocar incapacidade. Já a doença inflamatória pélvica consiste na inflamação dos órgãos reprodutores femininos, não se traduzindo sempre em dor na menstruação. A doença tem início na vagina e progride até ao útero, trompas de Falópio e ovários e, na maioria dos casos, ocorre como consequência de uma infecção que não foi devidamente tratada.
Por último, a síndrome dos ovários poliquísticos provoca alteração dos níveis hormonais, formando-se pequenos quistos nos ovários que provocam dor. Esta não tem que ser sentida em todas as menstruações, acrescenta a ginecologista.
Apesar destas cinco condições, existem ainda casos como o de Ana Almeida, nos quais não há um problema diagnosticado, mas em que a dor persiste.
Licença menstrual em Portugal: realidade ou utopia?
Em Portugal, o debate político acerca da licença menstrual também já começou. Formalmente, o pontapé de saída foi dado por parte do PAN, que propôs, na última sexta-feira, 13 de Maio, a criação de uma licença menstrual que fosse “até três dias”.
Na proposta de alteração ao Orçamento do Estado para 2022, o partido defende: “permitir que estas pessoas [com útero que sofrem dores graves durante a menstruação], justificadamente, se ausentem ao trabalho por um período durante o qual não estão capazes de prestar trabalho nas condições ideais trata-se de uma questão de justiça social e laboral”.
Apesar de a proposta ter sido apresentada, será ainda discutida em sede de comissão parlamentar.
Já em Abril, a Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose (MulherEndo) se tinha movimentado em defesa da criação de uma licença menstrual. A petição criada – para a qual a ginecologista Irina Ramilo já contribuiu – já arrecadou mais de 8000 assinaturas. De entre os sete pontos que apresenta, no quinto pode ler-se a “criação da licença menstrual para pacientes com diagnóstico de endometriose e/ou adenomiose”, usando como exemplo a Coreia do Sul, Taiwan e Indonésia, países onde a licença já vigora.