“A Ucrânia está na situação em que está, porque andámos a vender sonhos de forma displicente”
O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado diz que o Ocidente foi arrogante em relação à Rússia e defende a entrada da Ucrânia na União Europeia, porque o momento é de “excepção”.
- Em directo. Siga os últimos desenvolvimentos sobre a guerra na Ucrânia
- Guia visual: mapas, vídeos e imagens que explicam a guerra
- Especial: Guerra na Ucrânia
O ex-ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros dos governos de José Sócrates defende que a União Europeia (UE) precisa de uma solução negociada com Putin, porque não se pode dar ao luxo de esperar por uma mudança de regime como os EUA.
Há pouco tempo, aqui nessa cadeira, o ex-presidente da Comissão Europeia Durão Barroso disse que depois de a Rússia ter anexado a Crimeia em 2014, houve complacência e até cumplicidade de muitos países. Partilha desta opinião?
Sim, mas também acho que houve negligência anterior. Antes de 2014, todos nós sabíamos que no contexto das tensões crescentes com a Rússia a possibilidade de uma reacção agressiva por parte da Rússia era muitíssimo grande. Se tivéssemos querido evitar o agravamento das tensões, teríamos de ter dado mais atenção à relação com a Rússia no passado. Depois de 2014, claramente a reacção do Ocidente foi fraca.
Havia um conjunto de sinais que foram ignorados?
Claro, há muito tempo. Eu estive na cimeira de Bucareste em 2008 e era perceptível que havia linhas vermelhas da parte da Rússia. Houve negligência, porque não avaliámos que tipo de reacção a Rússia podia ter nesse contexto. Devia ter-se atendido à enorme pressão que do ponto de vista geopolítico estava a ser desencadeada sobre a Rússia relativamente ao alargamento da NATO. Eu senti particularmente durante a presidência de Portugal da UE que a pressão do alargamento aos países bálticos e à Roménia e Hungria tinha uma inquietação crescente da parte dos responsáveis russos. E é nessa altura que começamos a perceber que a revisão do conceito estratégico de defesa da Rússia nos ia conduzir a uma situação deste tipo. Era perceptível que forçar a entrada da Ucrânia e da Geórgia [na NATO] poderia desencadear uma crise geopolítica com esta gravidade. A responsabilidade política em tudo o que tem que ver com a violência, com o uso da força é sempre incontornável, mas a responsabilidade das lideranças políticas das grandes potências no desencadeamento de uma crise geopolítica é muitíssimo maior. Se há crise que é preciso evitar, é uma crise entre grandes potências. Não sabemos como essa relação de forças poderosas se desenvolve. Agora, aquilo a que assistimos é que no plano diplomático pouco se pode fazer neste momento. Estamos à espera que os sistemas estabilizem de novo. É muito difícil intervir. Uma crise geopolítica é como uma crise geológica – é desencadeada por forças que não conseguimos controlar com facilidade.
O alargamento da NATO foi demasiado rápido? E quando diz isto não é polémico, porque faz lembrar argumentos que alguma esquerda utiliza para tentar dizer que cercaram Putin e assim justificar a sua reacção?
Não justifico a acção de Putin. O que fez é inaceitável e a Rússia vai pagar por isso. Mas, repito, em Bucareste, foi claro que Putin ia agredir a Geórgia. Ele disse-o à frente de todos nós. A doutrina de segurança desenvolvida pela Rússia pôs sempre em causa a possibilidade de a Ucrânia e a Geórgia serem parte constituinte da Aliança Atlântica.
Que acha que vai acontecer agora? Uma Ucrânia retalhada?
Provavelmente. Antecipo um cenário de divisão da Ucrânia. Vamos ver como as negociações vão decorrer. Primeiro, é preciso encontrar condições para um cessar-fogo o mais cedo possível. A tragédia que se desenrola na Ucrânia tem de ser parada. A Europa tem todo o interesse em fazê-lo, mesmo que os EUA possam pretender ganhar tempo e tenham um conceito mais favorável a uma mudança em Moscovo, que precisa de tempo para que as sanções produzam efeito, para que a asfixia económica provoque uma reacção interna, uma mudança de regime. Acho que é essa a intenção dos EUA. Do ponto de vista do interesse europeu, devíamos ser mais diligentes a encontrar respostas políticas e diplomáticas o mais rapidamente possível. Esta crise não asfixia só a Rússia. Asfixia economicamente a Europa, cria enormes problemas, cria uma crise de refugiados, uma crise energética gravíssima, muitíssimo mais inflação do que estava previsto, teremos um aumento exponencial da dívida. E temos um problema que se pode tornar existencial para a UE, se estes problemas não forem controlados agora. Agora, estamos num momento de concertação e unidade do Ocidente e da UE, mas esse tempo vai passar e vamos identificar os interesses em confronto que são divergentes entre os diferentes Estados e entre a UE e os EUA. Vamos provavelmente encontrar matéria para uma dinâmica de desintegração. Resumindo: não devíamos jogar com o tempo como sendo favorável a uma mudança em Moscovo que nos permita negociar com um regime eventualmente mais favorável e resolver esta crise o mais rapidamente possível.
Sendo urgente uma solução, a adesão da Ucrânia à UE seria precipitado ou não?
Não, não acho. É possível conciliar duas posições negociais que desfavorecem a integração da Ucrânia na NATO, mas que favorecem a sua aproximação à UE. Essa era a estratégia que em 2006/7, se não tivesse havido negligência, devia ter sido claramente assumida e posta na agenda das relações com a Rússia. A Ucrânia seria uma ponte para a relação entre o Ocidente, a UE e o vasto território da Rússia. Seria, não um ponto de confronto, mas a ponte para aproximar a Rússia das condições de interdependência económica que favoreciam um quadro de estabilidade e segurança estratégica comum.
Os Balcãs também estão em lista de espera para entrar para a UE. Está a defender um novo alargamento da UE?
É inevitável, tendo em conta o que se passa a leste, a possibilidade de divisão da Ucrânia, com base num acordo que nunca será definitivo mas transitório. Vamos assistir provavelmente a um conflito congelado por um bom período de tempo, como outros conflitos que o desmembramento da União Soviética nos apresenta ainda hoje. Nesse contexto de uma espécie de “cortina de ferro” que se pode erigir nas relações com a Rússia de novo enquanto Putin estiver no Kremlin, não vejo outra alternativa senão preparar um quadro de adesão devidamente calendarizado. O Ocidente tem de se fortalecer, para um contexto de Guerra Fria que se apresenta como inevitável, na base de uma visão mais ambiciosa.
O estar preparado passa também pelo rearmamento da UE?
Não há alternativa, agora. Temos de estar preparados para tudo. Essa é a base da dissuasão no contexto dos arsenais nucleares, de uma realidade geopolítica em que as potências nucleares estão em antagonismo, para não dizer em confronto. O drama da Europa é que não tem condições para resistir com autonomia estratégica à situação actual. O pesadelo da Alemanha é ser uma grande potência económica, mas sem ter os atributos de uma potência média em termos militares. É óbvio que é necessário continuar com o processo de rearmamento. Admitíamos que estávamos no séc. XXI, mas estamos a conviver com realidades do séc. XIX, como se vê na Ucrânia! Já vimos o que isso nos custou, quando fomos com a ideia de transformar o Afeganistão e o Iraque e a Síria em democracias de padrão ocidental. Mas agora é na própria Europa que sentimos que as condições políticas exigem considerações de defesa militar que há uma década considerávamos dispensáveis.
A ideia de um exército europeu não está sepultada com a presença esmagadora da NATO no flanco europeu?
Não, porque é do interesse americano vender as armas que está a vender, equilibrando a balança comercial – nesta crise não só vende armas, mas também gás. Vai conseguir reequilibrar a sua balança comercial com a Europa que era um problema que desgastava a coesão da Aliança. A pressão para o reforço do armamento no contexto da NATO será cada vez maior. A autonomia estratégica da UE em termos de segurança colectiva e de defesa da União não tem pés para andar, será sempre limitada por divergentes interesses internos, como no grupo de países da Europa do Leste. O pilar fundamental da defesa ocidental em torno da Aliança Atlântica sairá imensamente reforçado com esta crise.
Como pode a UE aceitar no seu clube um país com grandes disputas territoriais?
Tem de haver excepções e esta é uma situação absolutamente excepcional. Tem de se criar um compromisso político com a Ucrânia. A Ucrânia está na situação em que está, porque andámos a vender sonhos de forma displicente. Quando vejo o que se passa na Ucrânia, sinto revolta com a agressividade e brutalidade de Putin, mas também com a nossa negligência em não ter percebido que isto podia acontecer. Já o fizemos no Afeganistão e no Iraque, na Síria, na Líbia. É tempo de reflectirmos sobre as condições de convivência, de uma especificidade civilizacional do Ocidente numa vanguarda de civilização única no respeito pelos indivíduos, pelas liberdades. Nós não vamos impor este modelo a ninguém como temos visto. Temos de aprender a conviver com outras realidades civilizacionais e políticas. Aquele momento muito curto de bipolaridade, de dez anos, de hegemonia ocidental, de poder da liderança americana depois da Guerra Fria, em que a voz da América era ouvida, acabou. Desde os ataques às Torres Gémeas entrámos numa escalada de repetição de uma visão que tínhamos quando fomos para o Kosovo ou quando bombardeámos Belgrado em nome da defesa humanitária. Continuámos a pensar como nesse tempo sem nos darmos conta de que o mundo mudou e que outros poderes emergiam com capacidade para nos desafiar. Temos de refazer o pensamento estratégico no Ocidente. O capitalismo hoje é incontestavelmente o modelo de organização económica aceite internacionalmente, mas daí a querer levar os nossos valores políticos, sociais, culturais, há tempo. Há tempo para isso. A China capitalista de há 30 anos não se transformou na China democrática como esperávamos. Temos de rever os nossos conceitos. Vi o [Francis] Fukuyama muito entusiasmado com um artigo em que parece que o fim da história está de volta, que agora é que vai ser, que a Rússia vai ser democrática. É um erro. Eu andei muitos anos nisto. Andei 13 anos em reuniões internacionais. Uma parte do mundo estava farta desta arrogância, desta supremacia e de uma certa sobranceria com que o Ocidente encara outros valores, culturas, religiões. Temos de aprender com os erros e ser mais humildes na forma como interagimos com o outro.
Como vê o papel da China neste conflito? Pode ser mediadora?
Não me tem surpreendido pela forma muito cautelosa com que tem abordado o tema. Percebeu que no curto prazo o desgaste da imagem da China com esta guerra em termos internacionais é muitíssimo maior do que admitiam. Em Pequim, haverá um debate interno sobre a forma como se deve posicionar. A percepção que tinha das operações não era a que veio a ter. O Estado-maior russo não tinha a informação toda, nem o planeamento. Estão quase colocados numa situação de humilhação, em que a desmistificação da sua capacidade militar se desfaz nas estepes da Ucrânia. A surpresa em Moscovo é a surpresa em Pequim e, provavelmente, a China dará um passo atrás antes de dar outro passo à frente na relação com a Rússia. Se vai ser mediadora, depende. A mediação que está a ser feita por Israel, Turquia e Macron é a que interessa neste momento à Europa. O conflito tem de ser resolvido por um cessar-fogo o mais imediato possível e, depois, com base num acordo. Se Putin continuar no Kremlin, a única forma é negociar um acordo transitório.