Empresas, Direitos Humanos e o Ambiente: poderá 1% fazer a diferença?
As empresas deverão identificar, prevenir, mitigar e responder pelos atuais e potenciais impactos adversos nos direitos humanos que possam causar ou para os quais possam contribuir através das suas próprias atividades, ou que possam estar diretamente ligados às suas operações, produtos ou serviços através das suas relações comerciais.
No dia 23 de janeiro de 2022, a Comissão Europeia publicou a muito aguardada Proposta de Diretiva sobre Sustentabilidade Empresarial e Diligência Devida.
O seu principal objetivo é “assegurar que as empresas ativas no mercado único contribuem para o desenvolvimento sustentável (…) através da identificação, prevenção e mitigação de riscos, pondo fim e minimizando potenciais ou atuais impactos adversos nos direitos humanos e no ambiente, que tenham lugar nas respetivas operações e cadeias de valor das empresas”. De facto, o desenvolvimento nunca pode ser sustentável se no seu cerne não estiver o respeito pelos direitos humanos.
Neste sentido, vários estudos têm vindo a destacar que, embora as empresas possam ter um impacto positivo na sociedade e no ambiente, estas podem, de igual modo, causar ou contribuir para diversos danos e violações dos direitos humanos, tanto através das suas operações como das suas cadeias de valor a nível mundial. Alguns exemplos são o trabalho forçado e o trabalho infantil, bem como as condições de trabalho precárias ou perigosas, que ainda hoje são uma realidade para milhares pessoas. Estima-se que uma em cada cinco peças de vestuário de algodão que o consumidor compra seja feita com recurso a trabalho forçado da comunidade uigur na região de Xinjang, na China. Pela primeira vez na história recente, o recurso a trabalho infantil tem vindo a aumentar, tendo crescido no valor de 8,4 milhões nos últimos quatro anos, e atingindo assim o valor total de 160 milhões.
Apesar de estes cenários parecerem distantes da realidade em que vivemos, os riscos em matéria de direitos humanos não existem apenas em lugares longínquos ou países subdesenvolvidos. Têm sido, também, identificados no nosso território alguns casos de violações, sendo que alguns deles foram agravados pela crise da covid-19, como ilustrado pelas conhecidas situações de trabalho precário nos setores da hotelaria, da “economia gig”, da indústria têxtil e do setor agrícola.
Neste contexto, têm sido várias as tentativas de regulação da atividade empresarial na sua relação com os direitos humanos e com o ambiente.
Adotado por unanimidade pelo Conselho de Direitos Humanos em 2011, os Princípios Orientadores da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos têm contribuído para um progresso significativo na promoção do respeito pelos direitos humanos no seio da atividade empresarial. A adoção destes princípios representa um marco histórico por ser a primeira vez na história mundial que um instrumento internacional deste tipo reconhece que as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos. Para cumprir este dever, as empresas devem levar a cabo um processo de diligência devida em direitos humanos que consiste num processo contínuo através do qual as empresas deverão identificar, prevenir, mitigar e responder pelos atuais e potenciais impactos adversos nos direitos humanos que possam causar ou para os quais possam contribuir através das suas próprias atividades, ou que possam estar diretamente ligados às suas operações, produtos ou serviços através das suas relações comerciais.
Na prática, de natureza não vinculativa de um ponto de visto jurídico, deste instrumento resulta que a decisão de levar a cabo um processo contínuo de diligência devida em direitos humanos está à discrição das empresas, não havendo por isso sanções no caso de incumprimento. Consequentemente, apenas um número limitado de empresas adotou processos de diligência devida nesta matéria.
No nosso estudo para a Comissão Europeia demonstrou-se que, na Europa, pouco mais de um terço das empresas adotaram processos de diligência devida que tenham tido em consideração todos os seus impactos nos direitos humanos e no ambiente. Em Portugal, a situação é ainda pior. O Primeiro Inquérito Nacional sobre Conduta Empresarial Responsável e Direitos Humanos revelou que apenas uma empresa em cada cinco adotou processos de diligência devida em direitos humanos.
Desta forma e visando combater o vazio legal existente neste tema, um número crescente de jurisdições tem adotado legislação na qual se estipula uma obrigação legal para que as empresas adotem processos de diligência devida em matéria de direitos humanos e ambiente. São exemplos disso a França, os Países Baixos, a Suíça, a Noruega e a Alemanha.
A nível europeu, a Proposta de Diretiva sobre Sustentabilidade Empresarial e Diligência Devida foi adotada nesta linha. Se adotada, a Diretiva será aplicável a grandes empresas europeias, bem como a grandes empresas de países terceiros com operações significativas na UE. Tais empresas serão obrigadas a levar a cabo processos de diligência devida para identificar, prevenir e pôr fim aos efeitos adversos ou, nos casos em que tal não for possível, mitigar esses efeitos. A Diretiva prevê ainda a supervisão administrativa por parte de entidades públicas, que deverão ter poderes de investigação e imposição de sanções, tal como multas calculadas com base no volume de negócios da empresa. Para além do mencionado, a Diretiva inclui uma norma que estabelece a responsabilidade civil das empresas, de forma a garantir que aqueles que forem afetados pelas atividades destas têm acesso a reparação legal. Contém, ainda, um artigo específico sobre as alterações climáticas que requer que as empresas adotem um plano que garanta que o modelo de negócios e a estratégia da empresa são compatíveis com a transição para uma economia sustentável e com o compromisso de limitar o aquecimento global a 1,5°C, de acordo com o que foi assumido no Acordo de Paris. Para além disso, a Diretiva estabelece deveres para os administradores, incluindo o dever de garantir que, “ao cumprir o seu dever de agir no melhor interesse da empresa, os administradores das empresas [...] tenham em conta as consequências das suas decisões em matéria de sustentabilidade, incluindo, quando aplicável, consequências nos direitos humanos, alteração climáticas e no ambiente a curto, médio e longo prazo”.
Apesar dos progressos assinalados, a questão permanece: tendo em consideração que as pequenas e médias empresas (PME) – que representam cerca de 99% de todas as empresas da União – estão excluídas do seu âmbito de aplicação, será a Diretiva bem-sucedida e fomentadora da transição para modelos sustentáveis e do avanço dos ODS? É, contudo, evidente que, apesar de as PMEs não estarem diretamente abrangidas pela Diretiva, esta ser-lhes-á indiretamente aplicável uma vez que as PMEs fazem parte das cadeias de valor das grandes empresas. Neste aspeto, a Diretiva terá implicações para um vasto número de empresas, tanto dentro da UE como fora, e ainda nas cadeias globais de valor que existem.