A guerra que os russos vêem, um pedido de desculpas e dois apelos à paz

Mais de 6000 pessoas foram detidas na Rússia em protestos contra a guerra, enquanto os media estatais do país continuam sem mostrar imagens do conflito. Mostras de dissensão pública são raras mas existem.

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Polícias russos detêm manifestantes num protesto anti-guerra em São Petersburgo ANATOLY MALTSEV/EPA

A declaração deixou os participantes surpreendidos. “Deixem-me apresentar um pedido de desculpas em nome de todos os russos incapazes de impedir este conflito”, disse o chefe da delegação russa no IPCC (sigla inglesa de Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas), Oleg Anisimov, no encerramento do plenário deste fórum de 195 nações.

“Todos os que sabem o que está a acontecer não conseguem encontrar justificação para este ataque contra a Ucrânia”, acrescentou Anisimov, antes de agradecer à representante de Kiev ter regressado aos trabalhos — os membros da delegação ucraniana foram obrigados a deixar o encontro realizado por videoconferência na quinta-feira, depois do início da invasão, com alguns a procurar refúgio em abrigos. A chefe da delegação, Svitlana Krakovska, voltou para a sessão final, onde foi aprovado o último relatório deste fórum da ONU.

“Toda a gente ficou realmente comovida”, disse à AFP um dos participantes, referindo-se a comentários em chats e conversas informais. “Ele sabe que enfrenta riscos, foi uma mensagem muito sincera”, afirmou outra pessoa presente na reunião. Questionado pela AFP, o cientista russo, um veterano do IPCC, disse apenas que as suas palavras não devem ser interpretadas como “uma declaração oficial da delegação russa”. “Expressam a minha opinião e atitude pessoais”, esclareceu.

Opiniões de responsáveis russos que divirjam da narrativa do Kremlin são difíceis de encontrar, mas vão surgindo. Em simultâneo, muitos são os russos que insistem em sair à rua todos os dias para se manifestar contra a guerra, apesar da repressão e das detenções: de acordo com a organização não-governamental OVD-Info (que monitoriza protestos), só no domingo foram detidas 2791 pessoas em várias cidades e o total de detidos já ultrapassa os 6000.

Nas imagens que nos chegam destas manifestações vêem-se pessoas de todas as idades, mas principalmente jovens, com alguns a descreverem como tentam explicar aos familiares o que se está a passar. Isto porque a informação nos media é altamente controlada. Logo no dia 24, primeiro dia da ofensiva contra a Ucrânia, todos os meios de comunicação receberam ordens para citar apenas dados de fontes oficiais, sob ameaça de multas e bloqueio de sites. Dois dias depois, especificava-se que não é permitido descrever o assalto russo como “ofensiva, invasão ou declaração de guerra”, ao mesmo tempo que se limitava o acesso ao Facebook.

Esta segunda-feira, o regulador russo dos media, Roskomnadzor, bloqueou o site do canal de televisão Nastoyashchee Vremya, uma subsidiária da RFE/RL, por divulgar “informações publicamente importantes não confiáveis” sobre o conflito.

“No seu desespero para silenciar a dissidência, a Rússia também está a usar empresas controladas pelo Estado para calar os que se manifestam contra o conflito”, afirma Marie Struthers, directora da Amnistia Internacional na Europa de Leste e Ásia Central, num comunicado da ONG internacional. “O afastamento do apresentador de televisão Ivan Urgant e a marginalização da respeitada jornalista Elena Chernenko, que foi excluída de um grupo de imprensa que seguia o Governo por redigir uma carta antiguerra, provam o desprezo do Estado pela liberdade de imprensa”, denuncia.

Quem na Rússia siga apenas os media oficiais só tem acesso à narrativa alimentada pelo Kremlin, ouvindo em permanência que esta ofensiva foi uma guerra de necessidade, para defender os civis dos territórios separatistas do Donbass e que os militares russos estão a ser recebidos de braços abertos pelos ucranianos.

“O próprio facto de termos reconhecido [a independência das] as repúblicas do Donbass foi um sinal enviado às autoridades ucranianas parem de disparar, parem de bombardear Donetsk. Depois disso, os ataques a Donetsk só pioraram e vários projécteis caíram mesmo na Rússia”, afirmou na televisão estatal o deputado Andrei Isayev, citado no Twitter por Francis Scarr, jornalista digital da BBC que segue os media russos.

Imagens do conflito são inexistentes, com raras excepções. Segundo o diário Le Monde, a televisão independente Dojd, que apenas transmite através da internet, é o único canal que mostra vídeos da ofensiva e que recolhe testemunhos em Kiev ou Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Imagens às quais têm acesso os tais jovens que se manifestam e que denunciam às consequências que as decisões de Putin terão na sua geração.

A força das elites

Apesar da determinação destes russos e do impacto da vaga de sanções internacionais contra a Rússia, que em breve se fará sentir no aumento dos preços ou no desemprego será difícil parar Putin através de uma mobilização social. O que não é o mesmo que dizer que o Presidente russo é imune à opinião pública, apesar de o seu peso ser incomparavelmente menor do que o da opinião pública de uma democracia.

A par dos protestos, dezenas de artistas russos (assim como alguns desportistas), de todas as áreas, têm-se se oposto publicamente à guerra, com alguns a demitirem-se dos seus cargos em instituições estatais. Para além dos mais de 150 jornalistas e cientistas que assinaram uma carta a pedir o fim da guerra, 150 deputados municipais russos também já condenaram a ofensiva. “Por causa dos recursos e do acesso que têm, as elites são a maior ameaça aos líderes autoritários”, disse ao jornal The New York Times Erica de Bruin, cientista política da Faculdade Hamilton, de Nova Iorque.

Um dos objectivos das sanções impostas por países da UE e do G7 é atingir a elite russa, nomeadamente os oligarcas, na expectativa de que isto aumente a pressão sobre Putin. Dois bilionários (que não são alvo das últimas sanções) já quebraram o silêncio. O primeiro foi Mikhail Fridman, fundador do Banco Alfa (o maior banco privado do país), que pediu o “fim do derramamento de sangue” e defendeu que “a guerra nunca pode ser a resposta”, numa carta escrita aos seus funcionários e citada pelo diário Financial Times.

Recordando que nasceu e viveu na Ucrânia até aos 17 anos e dizendo que os seus pais ainda vivem em Lviv, descreveu o “actual conflito como uma tragédia para russos e ucranianos”, mas não deixou de clarificar que os seus comentários não são “políticos”.

Uma “pequena hipótese"

Oleg Deripaska, que construiu a sua fortuna a negociar matérias-primas, apelou à paz e pediu que se iniciassem negociações “o mais depressa possível” num post na aplicação de mensagens Telegram. Segundo as últimas estimativas da revista Forbes, a fortuna de Fridman é de 11,7 mil milhões de dólares (dez mil milhões de euros); a de Deripaska está avaliada em quatro mil milhões (3,5 mil milhões de euros).

Pode não passar disto ou pode ser apenas o começo. Dmitri Alperovitch, norte-americano nascido na Rússia que é director executivo do instituto Silverado Policy Accelerator, de Washington, acredita que pela primeira vez o poder de Putin pode estar em risco. As sanções e o isolamento diplomático “vão ser muito pesados e ter impacto não apenas nos oligarcas bem conhecidos, mas em muitos que integram os círculos militares e da espionagem que têm enriquecido pessoalmente no regime de Putin”, escreve na sua página de Twitter.

Sublinhando que se trata apenas de uma “pequena hipótese”, Alperovitch admite um cenário em que alguns membros da facção siloviki, os homens do aparelho de segurança que têm visto a sua posição fortalecida desde a anexação da Crimeia, em 2014, “decidam que estão fartos e que chegou o momento de o afastar e de tentar obter uma trégua com o Ocidente, algo que é quase impossível com Putin”.

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