A aprendizagem escolar em tempos conturbados

A educação formal virou-se do avesso, cavando ainda mais o fosso social entre alunos e entre escolas, apesar de muitas delas terem sido o baluarte da equidade social.

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"Um dos mais significativos desafios pedagógicos trazidos pela pandemia para a escola foi, decerto, o da utilização de novos materiais de aprendizagem" Paulo Pimenta/Arquivo

Muitos são os relatórios internacionais sobre a pandemia e os seus efeitos nos sistemas educativos, sobretudo no período de março a junho de 2020, coincidente com o tempo mais longo do encerramento das escolas e com o uso generalizado de novas formas de aprender e ensinar. Um dos mais recentes é o da OCDE sobre a continuidade da aprendizagem durante a pandemia.

A particularidade deste relatório é o de apresentar 45 estudos de caso, abarcando 35 países de vários continentes, sobre medidas concretas de resposta a uma mudança rápida no modo de funcionamento da escola, em função de novos recursos e de um espírito de inovação surpreendente.

Em escasso tempo, foram elaborados e concretizados planos de contingência ao nível de cada sistema educativo, de modo a responder a uma mudança para a qual ninguém estava preparado, dando origem a projetos muito diversos e à participação ativa da comunidade escolar. Neste gigantesco esforço coletivo deve ser reconhecido, também, o poder local, cuja ação foi determinante na relação de proximidade com as pessoas e no modo como assegurou determinados recursos tecnológicos, garantiu o acesso à internet ou providenciou medidas de apoio social.

Na maioria dos casos descritos no relatório da OCDE, os decisores políticos tiveram uma ação preponderante, tal como foi essencial o papel dos atores educativos, tendo surgido com a pandemia um novo perfil de participação dos pais ou encarregados de educação nas atividades dos seus educandos. O espaço familiar, tanto dos alunos como dos professores, substituiu, de forma prolongada, o espaço de uma nova escola, centrada na aprendizagem remota e desligada do contacto presencial. Por sua vez, a sala de aula moveu-se para o ecrã e outros modos de comunicar e interagir foram adotados. Ou seja, a educação formal virou-se do avesso, cavando ainda mais o fosso social entre alunos e entre escolas, apesar de muitas delas terem sido o baluarte da equidade social, no modo como resolveram problemas sociais prementes, nomeadamente a alimentação de crianças e jovens que, de um momento para o outro, ficaram privados de um bem social fundamental.

Um dos mais significativos desafios pedagógicos trazidos pela pandemia para a escola foi, decerto, o da utilização de novos materiais de aprendizagem, através de diversos recursos – por exemplo, plataformas de comunicação e redes sociais (WhatsApp, Facebook, etc.) – e de materiais relevantes para a organização da aprendizagem digital. Contudo, a superabundância de materiais de aprendizagem teve consequências visíveis: por um lado, uma maior diversidade pedagógica e novas formas de exploração de conteúdos; por outro, uma maior dificuldade de os professes selecionarem os materiais adequados, principalmente os que dispuseram de autonomia na construção do currículo, já que a flexibilização confere às escolas capacidade de decisão sobre alguns dos conteúdos a desenvolver.

Daí que, como se verificou nalguns estudos de caso, o ensino remoto tenha contribuído para reforçar a lógica do currículo nacional e para seguir taxonomias baseadas em competências específicas, com a manifesta ausência das competências socioemocionais dos alunos.

Ainda nesse novo mundo escolar, e num contexto de aprendizagem mediado pela tecnologia, o grande desafio pedagógico, para os professores, foi o de combinar abordagens pró-ativas, tornando a aprendizagem mais interessante para todos os alunos, com abordagens reativas, com foco nas dificuldades dos alunos e no seu possível desinteresse face à aprendizagem remota. As respostas exigiram, por isso, mudanças significativas ao nível das competências humanas e da disponibilização de recursos, alterando, respetivamente, modos de agir e formas de aprender, numa aceleração para a escola digital.

Dir-se-á, com razão, que a pandemia foi determinante para a transformação digital da educação, da escola e da pedagogia, pois a aprendizagem remota mostrou o poder das tecnologias digitais na reconfiguração da sala de aula. Por conseguinte, a escola passará a funcionar na base de modelos híbridos, embora a centralidade deva estar nas práticas pedagógicas e não tanto nas tecnologias como meio instrumental. Sobre o que se evoluirá ou não, num curto espaço de tempo, e naquela que será a primeira avaliação global da aprendizagem na era digital, o relatório PISA 2025 apresentará resultados comparativos.

A tecnologia sempre contribui para a melhoria do ensino e da aprendizagem, mais ainda quando o digital altera de forma radical o acesso às fontes de informação e conhecimento, argumentando-se que as tecnologias digitais podem estabelecer um novo equilíbrio entre a aprendizagem autónoma (presencial ou remota) e a aprendizagem social supervisionada pelos professores. Além disso, é preciso questionar o papel da indústria tecnológica não só no estabelecimento de novas fronteiras sociais e educativas, como também na construção de novas formas de aprender, não sendo possível, porém, negligenciar que muitas das parcerias relacionadas com o uso de tecnologias digitais em meio escolar são apresentadas como sendo o motor da inovação pedagógica, cada vez mais presente numa agenda (e também num mercado) global da educação digital.

Muitas lições são tiradas desse período condizente com a primeira vaga da pandemia, concretamente: os sistemas educativos são resilientes e inovadores perante situações de emergência; os decisores políticos estabelecem prioridades de investimento em conhecimento, redes e parcerias; as desigualdades, sendo ainda mais amplas do que se pensava, precisam de ser combatidas, pois também existe a denominada pandemia das desigualdades.

Mesmo que os estudos apresentados pela OCDE não sejam suficientemente abrangentes em termos de dados empíricos, é manifestamente reconhecido que a pandemia contribuiu para a perda de aprendizagens significativas nos percursos de escolarização mais iniciais, bem como para a fragmentação social, com impacto nas aprendizagens, e para o esbatimento das competências socioemocionais dos alunos, privados da interação entre pares, por tanto tempo.

Se 2020 foi um longo ano para as escolas, para os professores, para os alunos e para as suas famílias, 2021 também foi marcado por medidas de excecionalidade pedagógica ao nível do ensino presencial.

Olhando-se para o que foi esse período de pandemia e para as suas implicações em meio escolar, concluir-se-á, entre outros aspetos, que: as tecnologias digitais permitiram a emergência de um ecossistema de inovação em educação; a escola foi reconhecida socialmente no modo como respondeu às novas formas de ensinar e aprender; a educação foi revalorizada na sua missão de promover o desenvolvimento integral das crianças e dos alunos; nenhuma das medidas inovadoras adotadas poderá compensar as oportunidades perdidas de aprendizagem; houve lacunas significativas em termos de utilização das tecnologias digitais; foi manifestamente evidenciada a relevância da participação das famílias nas atividades escolares dos seus educandos, do poder de colaboração entre professores e da colaboração global; é urgente redefinir as prioridades do currículo, centrado no valor da aprendizagem interdisciplinar e na procura de respostas para questões problemáticas e incertas.

Com efeito, nessa perspetiva crítica, reconhece-se que a pandemia causou um choque tremendo nas escolas e nos sistemas educativos, com aspetos negativos e positivos, ficando a convicção de que podemos aprender muito com o engenho humano, com o empenho da sociedade, com a colaboração entre atores educativos e com o poder da inovação, enquanto caminho seguido para ultrapassar as dificuldades surgidas.

Talvez olhando para esse longo período de ausência da escola presencial, possamos descobrir pistas como reconstruir sistemas educativos mais inclusivos, que preparem as crianças e os jovens para inventarem um futuro melhor, tal como é defendido pela UNESCO, no relatório apresentado em dezembro de 2021, onde é proposto um novo contrato social para a educação, como estratégia de reimaginar os seus futuros.


UNESCO (2021). Reimagining our futures together: A new social contract for education. UNESCO.

Vincent-Lancrin, S. (Ed.). (2022). How learning continued during the COVID-19 pandemic: Global lessons from initiatives to support learners and teachers. OECD.


O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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