Tânia Muxima pedalou o desafio Portugal Divide: “O isolamento ensina-nos muito sobre a vida que devíamos levar”

O ponto mais a Norte, a Sul, a Este e a Oeste, o ponto mais alto e o mais central. Desta vez, Muxima não deu a volta ao mundo em bicicleta — ou a volta à Islândia em trotineta —, mas cruzou Portugal, o país que mal conhecia. Foram 1420 quilómetros em 16 dias.

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Tânia Muxima acaba de completar o desafio Portugal Divide Marília Maia e Moura

Temporal, ventos “ciclónicos”, chuvadas e molhas, ladeiras íngremes, “coça” atrás de “coça”. Quando a Fugas conseguiu conversar uns minutos com Tânia Muxima, na recta final do desafio Portugal Divide, a exploradora, sorriso genuíno, queixava-se apenas de ter passado “um mau bocado” entre a Golegã e Sintra. “São camiões e camiões e muita gente cheia de pressa”, lamenta, via WhatsApp, a caminho de Aljustrel. “No Alentejo está-se bem. Estou perto de Aljustrel. Vou tentar chegar lá hoje que Castro Verde já é muito longe. É um bocadinho a subir e está muito vento”.

É assim, de bicicleta, “em câmara lenta”, que Muxima — quer dizer “coração” em Kimbundu, dialeto de Angola, onde nasceu — tem conhecido o mundo, África, América do Sul e países como Cazaquistão, Quirguistão, Nepal, Sumatra, Tailândia, Malásia e Irão, entre outros desvios. Sempre com uma cozinha, um quarto (tenda), uma “sala de estar” ("que é a minha bicicleta") e “uma televisão à frente dos olhos” que desta vez transmitiu numa única etapa uma rota que une os pontos extremos de Portugal continental (Cevide a Norte, Penha das Torres a Este, Cabo da Roca a Oeste, e o Cabo de Santa Maria a Sul), o ponto mais alto, a Torre da Serra da Estrela, e o cento geodésico, na Serra da Melriça. “Começas pelo Norte ou pelo Sul e traças tu o teu percurso”.

O desafio chama-se Portugal Divide, foi criado por um grupo de bikepackers e Tânia usou-o como “pretexto” para viajar em Portugal, onde nunca tinha pedalado a valer. “Nunca tinha viajado em Portugal desta forma. O desafio é muito bonito porque passei em sítios espectaculares. Estou quase a tocar no ponto mais a Sul e estou feliz”, diz Muxima, entusiasmada com o “super-bonito” interior de Portugal, com o “céu cor-de-rosa” do nascer do Sol de Inverno na Torre da Serra da Estrela ("tudo só para mim") e sobretudo com as pessoas que a foram recebendo ao longo do caminho, desconfiadas no início, afáveis e hospitaleiros instantes depois de perceberem que esta intrépida mulher só pede um pedaço de terra para pernoitar e retemperar forças.

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Na recta final Tânia Muxima

“Quando passei na Guarda, estava super-cansada. Entrei numa aldeiazinha que se chama Vale de Estrela. Em frente ao café havia um jardim. ‘Ando aqui de bicicleta, acha que posso meter ali a tenda no jardim dos putos?’ Gosto sempre de perguntar. ‘Importar ninguém se importa, mas já viu o frio que está?’ Tinha apanhado uma grande chuvada e tinha a roupa toda molhada. Montei a tenda e voltei ao café para secar a roupa na lareira enquanto bebia um chá. Já toda a gente sabia que tinha ali a tenda e as pessoas começaram a oferecer-me coisas. Pensei ‘este pessoal ficou mesmo feliz de eu ter plantado aqui a tenda!’ Isso é uma coisa espectacular.” Em Cambas, estava “a morrinhar”, e a cena repetiu-se. “Uma senhora passou e ficou desconfiada. ‘Precisa de alguma coisa? Acha que alguém se importa se eu acampar no meio da aldeia?’ A senhora voltou mais tarde de pijama e ficou uma hora à conversa.”

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Tânia Muxima

“Não estão habituados, mas, depois de ver que não há maldade, são super-prestáveis e espectaculares”, diz Muxima, “muito bem recebida no mundo inteiro”. “Sempre disse que na Europa as pessoas são mais frias, mas esta experiência está a contrariar essa teoria”.

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Muxima: "Quando pedalamos um país, temos que conhecer cada metro do país" Marília Maia e Moura

Tânia Muxima nasceu há 45 anos em Saurimo. Partiu para este Portugal Divide mal terminou a roadtrip organizada pelo Exodus Aveiro Fest, onde contou parte da sua história, que normalmente começa pela Figueira da Foz, spot privilegiado de ondas. Nunca quis trabalhar muito e explica porquê. “Se trabalhasse muito, tinha muito dinheiro para as poucas coisas que queria comprar. Comecei a pensar que mais importante do que ter esse dinheiro era ter o tempo para gastar o pouco dinheiro que iria ganhar.”

Para trabalhar escolheu a Suíça, o país da Europa que lhe permitia “ganhar mais dinheiro em menos tempo”. Sedente de aventuras, a plateia do Exodus animou-se. Até hoje, Tânia trabalha quatro meses por ano num refúgio de alta montanha na Suíça. Lá, não paga nem casa nem comida e por isso consegue poupar. “O que faço nos restantes oito meses? Viajo”, responde a viajante, que há sensivelmente dois anos, excepcionalmente deu a volta à Islândia em trotineta. Viaja de bicicleta por uma questão de autonomia. Carrega a tenda para não ter que partilhar quarto com “pessoal que chega às 4h com os copos e dá um pontapé no candeeiro”.

Entre a prancha de bodyboard e a bicicleta — e como os dois não são bem compatíveis, como comprovou numa aventura na Indonésia — escolheu pedalar e ver o mundo. As paisagens movem-na, as pessoas enriquecem a aventura. “As pessoas, principalmente em África, têm-me dado grandes lições”.

Tânia Muxima
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Tânia passou meses a pedalar no continente africano. “E quando pedalamos o país, temos que conhecer cada metro do país. De bicicleta não se salta de sítio em sítio.” Desceu pelo seu país natal, atravessou a Namíbia, o seu país preferido a seguir ao Nepal. Aprendeu a viver sozinha e em comunidade. Os miúdos e os sobas das tribos foram-lhe abrindo os olhos. “Temos que dar a atenção devida às pessoas que procuram os nossos sítios”.

Foi apanhada pela pandemia e pelo confinamento. Fechada em casa dos pais, na Figueira, sem um objectivo, arranjou um. “Sempre tive uma ideia de ter um espaço meu construído por mim”, explica à Fugas. Já tinha uma carrinha onde vive transformada pelas suas próprias mãos e está neste momento a plantar num terreno, que um dia quer chamar de casa. Muxima tem outro sonho: o de levar o sobrinho Bento, de nove anos, até aos refúgios de altitude na Suíça, na zona de Zinal. “Acho que toda a gente devia experimentar. Lá, dás muita importância a tudo, à água, à escassez de alimentos (que chegam de helicóptero), ao não esbanjar, ao não fazer lixo. O isolamento ensina-nos muito sobre a vida que devíamos levar. Dá-nos outra visão das coisas.”

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Muxima escreveu assim nas suas redes sociais, 1420 quilómetros e 16 dias depois: “As pernas e a cabeça fizeram um bom trabalho de equipa e levaram-me até ao final. Também quis muito e isso foi bastante importante. Apanhei chuva, vento, frio e pedraço, mas também apanhei muitos dias bons. Apanhei subidas do arco-da-velha mas também apanhei muitas descidas de ir a cantar por ali abaixo (...) Apanhei pessoas espectaculares que me ajudaram bastante. Apanhei aldeias bonitas com gente ainda mais bonita. Apanhei estradas só para mim e algumas, mas poucas, com muito trânsito. Apanhei amigos que me apoiaram. No fundo apanhei uma barrigada de satisfação e quando cheguei à ilha de Faro tinha lá os meus sobrinhos para me receberem. Agora vou para casa passar o Natal e pensar na próxima”.

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