A “família” do Exodus Fest voltou a estar junta para mostrar que “podemos fazer a diferença”
Dois anos depois, o festival internacional de fotografia e vídeo de viagem e aventura regressou a Aveiro, entre emoções à flor da pele, ovações e a “adrenalina” de ouvir histórias atrás de histórias que provam “que o nosso trabalho importa e que podemos fazer a diferença”. “Fazia falta estarmos juntos.”
“Ninguém imagina o esforço que foi para isto acontecer este ano.” Mas, depois de uma edição exclusivamente online e em versão best of dos anos anteriores em 2020, o Exodus Aveiro Fest voltou a encher o Centro de Congressos de Aveiro no último fim-de-semana para nos “inspirarmos uns aos outros” e nos “pôr a pensar como podemos situar-nos melhor neste mundo”. “Fazia falta estarmos juntos. Somos família, comunidade”, lançava Bernardo Conde, mentor do festival, na sessão de abertura, assumidamente exausto e emocionado. “Lamento os abraços que já dei.” Ao final de domingo, ter-lhes-ia “perdido a conta” numa edição de reencontros, emoções, inspiração e empoderamento.
Quantas vezes viajamos à procura “da diferença, do exótico” para percebermos que, onde quer que vivamos, sejam quais forem as experiências de vida, a cultura, a religião, todos “temos as mesmas motivações”? Família, amor, morte. Talvez como nunca, a pandemia veio mostrar-nos como “estamos interligados”. “Temos a mesma memória, pela primeira vez, em todo o mundo.” Cidades vazias. Famílias afastadas. O medo da morte e da incerteza. A solidão. A clausura. A globalidade interrompida e um mundo em suspenso. E, ainda assim, Daniel Landa duvida que a Humanidade “aprenda a lição” de que o mais importante é “tomarmos conta da natureza e uns dos outros”.
Mas é preciso voltar a partir além-fronteiras. É preciso “ouvir e observar atentamente” a relação das tribos “com a natureza” (Daniel Landa); testemunhar a resiliência de quem parte sem saber que chão pisa à procura de uma vida melhor, de quem constrói famílias, empresas, casas num país estrangeiro, ao longo de duas décadas, sem saber se um dia será deportado (Jon Lowenstein). É preciso expor a indústria da caça de animais selvagens na África do Sul (e noutros países) – a reprodução em cativeiro; os caçadores ocidentais, as suas espingardas e carcaças de elefantes, girafas, leões; a cabeça de um hipopótamo amarrada ao convés de um barco; a cara ensanguentada de miúdos e raparigas após a primeira caçada.
É preciso ir, e ficar, e regressar uma e outra vez para perceber como a “desconexão com a vida selvagem e o meio ambiente” é tal que se tornam meras comodidades, um “fluxo económico que sustenta o país e sul-africanos” e que, paradoxalmente, tem contribuído para a recuperação do efectivo de algumas espécies à beira da extinção (procuradas pelos caçadores) e para a manutenção do ecossistema de vastas propriedades. É apelidada de “indústria da vida selvagem” e defendida pelo sector como “amiga” da conservação da natureza. “Às tantas, temos que nos perguntar o que é que é mais importante salvar: a vida de um animal ou todo um ecossistema”, apontava David Chancellor na segunda mesa redonda desta edição.
Se a câmara fotográfica funciona como escudo protector no momento, entrar numa sala de troféus ou rever todas as imagens de animais mortos durante o processo de edição “consegue ser muito difícil”, assumia David a emocionar-se, já durante a tarde, numa palestra que quis transformar em debate com Paula Kahumbu, vencedora do prémio Personalidade do Ano Exodus. Mas “os custos [pessoais] valem a pena”, garantia em seguida, porque constrói-se “um corpo de trabalho incrível para mostrar, consciencializar e testemunhar o que está a acontecer”.
“Eu era bióloga e adorava ter continuado a estudar elefantes. Mas, se quero fazer a diferença, preciso de fazer algo que tenha impacto, e não apenas algo importante e divertido para mim”, afirmaria Paula Kahumbu. A realizadora e conservacionista queniana esteve em destaque nesta edição do Exodus, subindo a palco por diversas vezes, exemplo daquilo que se foi ouvindo repetidas vezes ao longo do fim-de-semana: a importância de dar espaço e ferramentas para que as pessoas contem as suas próprias histórias.
Paula cresceu nos arredores de Nairóbi e, naquele tempo, havia “tantos animais a poucos metros ou quilómetros” de casa. “A natureza estava em todo o lado”, recorda. No entanto, hoje em dia, a maioria dos quenianos nunca terá visto um animal selvagem. Os parques nacionais, com entradas a preço de turista, “são inacessíveis à população local”. Os programas televisivos que nos mostram leões, chitas, girafas, elefantes, rinocerontes ou manadas de antílopes? Feitos por brancos ocidentais para brancos ocidentais. “São sempre os mesmos leões, as mesmas histórias, porque a comunidade de videógrafos é muito pequena. Há pouca criatividade”, dizia na manhã de sábado, para retomar durante a tarde: “A história de África nunca foi contada por africanos.”
Paula está “empenhada em mudar isso”. Através da Wildlife Direct, organização não-governamental onde trabalha como directora executiva, tem utilizado os media para “inspirar as pessoas” e “mudar a mentalidade do público”, procurando trazer a população queniana para o centro da luta pela conservação da vida selvagem – seja através de campanhas como “Hands of our elephants”, contra os caçadores furtivos e tráfico de marfim; seja através da produção das primeiras séries televisivas documentais sobre a vida selvagem feitas “por africanos para africanos”.
Wildlife Warriors conta a história de “heróis” locais que estão na linha da frente na conservação da vida selvagem e dos ecossistemas com o objectivo de “entusiasmar, inspirar e levar as pessoas a preocuparem-se” e a agirem. Depois de ter sido vista por mais de metade da população e transmitida em várias estações televisivas de outros países africanos, foi assegurada uma segunda temporada e um novo programa, em parceria com a National Geographic e a Disney, “para produzir a primeira série televisiva de sempre por africanos, para África, sobre vida selvagem e natureza”, tendo como principal foco as crianças. “Acho que esta vai ser uma oportunidade muito importante para criar uma imagem global de África, mas a partir de África”, concluiu, ao fechar o primeiro dia de palestras, para a segunda ovação da noite.
"Não consegues salvar o mundo, mas consegues salvar o teu quintal"
Momentos antes, o fotojornalista português Leonel de Castro levantava a audiência em palmas pelo trabalho Despojos de Guerra, dedicado ao retrato de ex-militares (e guerrilheiros) mutilados (física e/ou mentalmente) durante a Guerra Colonial, os seus sonhos antes de partirem, o local do acidente e os rostos de superação, dignidade e resiliência de quem, apesar das mazelas, vê nelas a sorte de poder viver uma segunda vida, ao contrário de tantos outros. Porquê imagens a preto e branco, criadas a partir de colódio húmido, uma técnica do século XIX? Porque as câmaras digitais permitem disparar tantas vezes que “se passam dias e dias” em que o fotojornalista não se lembra “de uma única fotografia” que tirou. “Foram feitas automaticamente”, assume. Dispositivo mais lento, “muito caro”, o equipamento e revelação em colódio húmido “obriga a reflectir” sobre cada imagem. “Quando estamos a trabalhar num grande formato, acho que as pessoas também conseguem descarregar ali as emoções. A imagem fica muito mais rica e ficamos todos a ganhar com isso.”
Numa edição em que a vida selvagem e a natureza estiveram em destaque – Ricardo Lourenço, um dos quatro ExodusTalents portugueses desta edição, subiu a palco para lembrar que esta também existe em Portugal e que precisa de ser protegida (“Não consegues salvar o mundo, mas consegues salvar o teu jardim, o teu quintal. E, se todos fizermos isso, por consequência podemos salvar o mundo”) -, muitos foram os oradores que relembraram o impacto das histórias para criar empatia e gerar mudança, mais importante do que as qualidades técnicas das imagens. “O meu objectivo no início era tirar as melhores fotografias que podia”, reconheceu Annie Griffiths, uma das primeiras mulheres fotógrafas a trabalhar para a National Geographic, com uma vasta e reconhecida carreira e trabalhos realizados em quase 150 países, ao fechar o alinhamento de oradores. Mas chega um momento “em que deixa de ser sobre ti e sobre o teu trabalho”. “O que é que realmente te importa?” As alterações climáticas, as mulheres. “Não quero que as minhas fotos sejam só bonitas, quero que elas sejam úteis.”
Johan Lolos continua a gostar de tirar fotografias de natureza e de magníficos horizontes, mas já não anda a “perseguir” gostos e seguidores no Instagram - quer “documentar o que é realmente importante” e contar “histórias mais interessantes”, seja o trabalho de uma equipa dos Médicos Sem Fronteiras no Haiti, pormenores culturais da Birmânia ou leões no Quénia – mesmo que isso o faça perder parte do meio milhão de seguidores que chegou a ter. Também o britânico Ben Page, depois de uma odisseia de três anos a pedalar à volta do mundo, quer continuar “a explorar o mundo da realização de filmes” e do poder do storytelling. Lucia Griggi reencontrou na Antárctida a paixão pela fotografia e levou a palco todas as mulheres fotógrafas e videógrafas da plateia para dizer-lhes que não desistam dos seus sonhos e trabalho.
“Criaste algo realmente especial e contagioso”, dizia Paula Kahumbu a Bernardo Conde, ao final de domingo, de prémio na mão. Ao longo de um fim-de-semana, contaram-se “histórias que realmente importam e que nos ensinam que o nosso trabalho tem um propósito e que consegue fazer a diferença”. “Fizeram-me perceber que, se calhar, tenho de fazer mais, muito mais. Porque ainda há tanto para fazer, e tanto talento e oportunidades, por causa desta grande amizade e conexão que estão a criar aqui.”
Para o ano, o Exodus promete voltar para relembrar que, “enquanto comunidade”, “podemos fazer mudança, seja nas nossas vidas, seja nas vidas à nossa volta”, fechava Bernardo Conde. Prevista para 3 e 4 de Dezembro de 2022, a próxima edição já tem bilhetes à venda e os primeiros oradores anunciados: Pippa Ehrilch, Alex Strohl, Beth Wald, José Sarmento Matos, Diana Tinoco, Jacinto Policarpo, Luís Godinho, Luísa Ferreira.