Violência Obstétrica: sem Zorro de espada e capote
Makas de uma angolana 4 Não se enganem, a violência não é só doméstica. É de género, sexual, étnica, obstétrica, médica, cumulativa de desequilíbrios físicos, psicológicos, sociais e económicos.
Lia a história da Soraia, da Silvia, da Juana, da Flora para logo voltar a sentir as primeiras batidas do coração de Glória. Há anos que vinha planeando que quando finalmente chegasse a chamaria assim. Sempre foi amore minha, criação minha, ser em mim, continuidade de um princípio e de um fim que haveria de começar ali, naquele ligeiro batimento, para ganhar asas e estender-se por uma vida inteira, cheia de outras vidas, como a minha, como a dela, como a de todos que se cruzassem nos nossos sorrisos, nos nossos olhares, na palma da nossa mão. Fui, como nos carrinhos de choque, pagando as fichas todas até que chegasse aquela que daria a volta inteira.
Não demorei muito para saber que era ela que se aproximava a passos de lã da minha vida. Uma amiga perguntou-me: “Estás grávida?”. Estava. Tinha confirmado a notícia com a ajuda de um amigo próximo, a quem encarreguei de ir à farmácia e comprar o teste. Naquele dia era eu e ela, eram as nossas vidas, não houve nunca espaço para aquela história romântica do pai, do marido, do noivo, do namorado. Éramos duas mulheres a atirar as pedras ao chão, a tentar acertar e fazer com que ali começasse a vida toda. O T. não se demorou, chegou com o copo de urina e foi devolvê-lo sem muitas perguntas. Depois subiu para me dizer: “Deu positivo. Agora decides tu o que fazes com a tua vida.” A magia é como a nostalgia, não se explica, sente-se. E eu senti que entre mim e a Glória o caminho se faria de muita luta, que era preciso fazer daquela pedrinha o diamante mais precioso da mochila. Porque eu sabia, sempre soube, que não se perde uma filha, perde-se uma vida toda.
Continuei a ler até chegar à declaração da Ordem dos Médicos, que “o termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal”. Se prestam cuidados? Lá voltamos nós ao precipício e ao feneratício do patriarcado caucasiano onde até se prestam imensas coisas, todas elas repletas de significados, mas não, Dr. Valentim, não se prestam cuidados porque no sistema hospitalar quer público quer privado, tal como ele foi estruturado, para estancar feridas de guerra, não há espaço para cuidar nem das mães nem das crias. O sistema hospitalar na sua fundação não assiste, estanca sangue. Foi na guerra e da guerra que nasceu o conceito de hospital que, viajando até aos dias de hoje, pouco ou nada evoluiu para um conceito de acompanhamento, de apoio. Prestam-se, isso sim, atos médicos. E de um ato médico a uma assistência a cuidados de saúde vai uma enormidade de significados incompreensível a uma sociedade baseada num modelo de saúde que, na sua raiz, nasceu da guerra, do militarismo, da luta, da contagem de espingardas. Temos o exemplo mais próximo deste militarismo refletido na corrente pandemia. Assim que se começaram a riscar vidas com maior velocidade, como respondeu a Europa? Acionando os militares, o poder da força feita de construções bélicas, do contar espingardas.
Seria preciso refazer toda a base que estrutura o pensamento do sistema hospitalar para retirar dele a violência que o arma e colocá-la ao serviço do cuidar, do assistir, do acompanhar. E enquanto isso não acontecer ou se algum dia acontecer, até lá teremos “violência obstétrica” num sentido mais específico e “violência hospitalar” no seu verdadeiro sentido, na sua abrangência e amplitude, que urge repensar, planear uma reforma de um sistema que fere com cabos, deixa cicatrizes, soma feridas, disfarça gritos, deixa cair lágrimas, repete prescrições anos a fio e só trata quem não esquece que a única coisa de que temos de ser capazes de manter assim que entramos num hospital é os olhos abertos. Mesmo que por vezes tenhamos que dormir, a salvação está em perceber que ainda que dormindo, nunca de olhos fechados.
Lembro-me do longo corredor que eu e a Glória percorremos por mais de uma vez naquelas três últimas noites. Assim que fiquei internada ganhei uma cama e um carrasco. Calhou-me a Assistente Hospitalar: “- Eu já fiz três abortos e saí a andar. Não sei porque é que está a chorar se nem casada é.” A partir dali estava marcada. Ela tinha decidido que seria quem me passaria a vigiar, porque outra coisa que se aprende nos hospitais é que há mais vigilantes do que lamparinas em dia de Nossa Senhora de Fátima. A mesma moda: um Salazar em cada esquina. E foi assim até ao fim, com o consentimento de um serviço inteiro de medicina, pois que nunca ninguém se lembrou de alertar que parasse, que falasse mais baixo. Três noites com a Glória a lutar para que ela conhecesse mais vida além do meu útero. Dos dias fiz 24 horas em combate, eu armada de uma força tranquila para que ela vivesse e a Glória aninhada numa armadura líquida, num embalo que lhe trouxesse a vida.
“- A esta altura é impossível prever seja o que for, estas coisas acontecem todos os dias”, disse-me o jovem médico na primeira noite de aperto. Voltou atrás para abrir ligeiramente a porta, que “- está a perder sangue, mas tem um bom útero”, como que a tentar dar algum sentido à briga. Encostou a porta e do outro lado estava ela: “- Então, é preciso voltar aqui outra vez ou já perdeu?” Ainda o ouvi num fim de corredor e ela foi comigo a empurrar a cama até à enfermaria.
Dormia e acordava, de casa tinha trazido a roupa do corpo e o terço. No penúltimo dia chegou-se a mim uma médica, também ela grávida, mas em estado bem mais avançado. Acertou-se que ninguém a seguiu e disse-me cúmplice, “- Antes desta gravidez tinha tentado outras duas. Vai ver que aguenta.” E sumiu-se na mesma velocidade, com medo de deixar testemunhas.
A determinada altura estás naquela linha em que só depende de ti, que se perderes és culpada, que se ganhares Glória venceu. Não tens nada que te encha de orgulho, não há medalha de honra nem certificado de mérito. És tu e a tua luta, a tua vida, a vida que dorme no teu útero. Começas a convencer-te que dependendo de ti, se quiseres consegues. E uma mãe não pode não querer, não pode duvidar, ter medo, deixar-se assombrar.
À terceira noite entrava numa guerra de Kuata Kuata, agarrada ao colar de contas senti o cheiro do cachimbo. A velha já tinha lido a sina. Ou me colocava mais uma pedra ou deixava que guardasse o diamante. “- Hoje trocas comigo, faço eu noite”. Lá estava o carniceiro, chegava de mansinho para ver a fralda e disso dependíamos. Ou puxava a cama e íamos pelo corredor ou virava-me as costas, a mim, à Glória e ao colar de contas. Naquela hora sentia-a puxar a cama, depois o bater das portas e o percurso pelo corredor do Hospital Santa Maria. Entrei novamente na pequena sala, voltei a sentar-me na cadeira e ela sempre na marcação: “- Já sabe de cor, é sentar-se e abrir as pernas”. Ninguém se atrevia a um “já chega!”, era um silêncio cúmplice. À terceira noite encostaram-me a cama à parede, fiquei ali à espera dela, à espera que me viesse buscar. Mas não. Passou-se um tempo e fui para uma outra sala, deitaram-me numa maca sem que fosse preciso a presença dela. Ninguém me mandou abrir as pernas, bastava passar da cama para a maca. Adormeci. Depois entrou um médico de cabelos brancos e atrás vieram os alunos. Uma senhora, que segundos depois percebi ser a anestesista, pediu-me que lhe desse a mão. Tinha-as de encontro ao meu peito e foi nessa altura que tudo se tornou claro: “- Dê-me a sua mão, senhora. Tem de me dar a sua mão”. Resisti. “- Senhora, dê-me a sua mão”. Deixei que as lágrimas caíssem. A velha terá dito: “Pega, saiu-te mais uma pedra”.
Quando acordei estava novamente no corredor, como se nunca tivesse saído dali. Ela veio, via entrar numa das pequenas salas e sair. “Pega nisto, é teu”. Só no corredor, naquele longo corredor do Hospital Santa Maria, percebi o que tinha nas mãos. Algo em mim me fez voltar ao momento em que espreitei a ecografia e senti aqueles pequenos batimentos.
Nunca ninguém me disse nada, nunca ninguém falou comigo, não senti que naquelas três noites, numa noite que fosse, se praticassem cuidados médicos. Já atos médicos sim, repetidamente e como prescrições.
A nós, mulheres, reservam-se muitas lutas. Sem “Zorro de espada e capote” para nos “salvar à beirinha do fim”. Lutas contra a pressão psicológica, contra a agressão verbal, contra o uso abusivo do corpo, contra o preconceito social, contra as amarras de uma sociedade patriarcal, hegemónica, caucasiana. Nós, mulheres, somos o resquício bélico que prolonga a escravatura, somos a cara e a coroa de um sistema monetário que dá vapor a uma economia esclavagista, a face mais visível da humilhação. Contra tudo isto é preciso lutar, inverter a sociedade até que esta seja plural, assistida, obreira, criativa e participativa. Não se enganem, a violência não é só doméstica. É de género, sexual, étnica, obstétrica, médica, cumulativa de desequilíbrios físicos, psicológicos, sociais e económicos. E porque a violência continua a matar uma mulher por cada vez que nasce outra, é preciso continuar, sempre, à espera de Glória.