Não sei se o ditado do pássaro na mão se aplica aos resultados da conferência do clima, a COP26, que terminou na semana passada, em Glasgow. Não só o grau de compromisso com o abandono dos combustíveis fósseis foi mitigado no meio de forças de expressão com força pouca, como há o risco de alguns daqueles protagonistas não estarem interessados em cumprir o que assinaram. Vamos continuar a furar o chão em busca de carvão, gás e petróleo, e não se vislumbra que o corte de emissões ganhe, tão cedo, globalmente, o ritmo necessário.
Nesta corrida contra o tempo, há sectores mais dependentes e outros que já estão mais próximos da transição. No campo da mobilidade, o automóvel com motor de combustão interna tem mesmo os dias contados, com ou sem o acordo de alguns países muito importantes, que não quiseram, para já, assumir uma data para o funeral, com medo de prejudicar as suas indústrias locais. É uma questão de mercado, e o mercado, na sua boa velha maneira de funcionar, já percebeu para que lado são as próximas curvas da estrada, e já ajustou a rota. Em poucos anos, talvez ainda se façam alguns carros como os de hoje, para coleccionadores. Provavelmente vai ser é muito caro.
Os carros eléctricos resolvem, onde forem usados, parte do problema das emissões de gases com efeito de estufa e de alguns poluentes responsáveis por muitas mortes e doenças respiratórias graves. Se acreditarmos que o incremento de produção de energia necessário para a electrificação da mobilidade virá, sobretudo, de fontes limpas, eles serão, efectivamente, parte da solução. Mas apenas isso, parte. Em 2050 estima-se que a electricidade forneça metade da energia final usada por toda a economia mundial, e a previsível pressão sobre as redes eléctricas – mesmo que as venhamos a conseguir descentralizar, com a micro-geração – aconselharia a que repensássemos não apenas o combustível, mas o modelo de mobilidade urbana, para o tornar mais energeticamente eficiente.
O grupo de cidades C-40, entre as quais se encontra Lisboa, publicou durante a COP26 um estudo (link em inglês) dando conta de que, para atingir os objectivos climáticos, os seus membros, que são algumas das maiores metrópoles mundiais, precisam de duplicar o número de utilizadores de transporte público nesta década, o que implicaria mais de 181 mil milhões de euros anuais de investimento. Parece muito, mas parecerá ainda mais se o investimento acabar por não ter o efeito desejado, por culpa de políticas públicas que, beneficiando o automóvel no espaço público, tornam o transporte colectivo rodoviário menos competitivo e, por isso, menos atraente. E o tráfego, com ou sem fumo, também inibe muitos cidadãos de andarem mais a pé e de bicicleta, como nos explicou Lucy Saunders, criadora do projecto Ruas Saudáveis.
Um novo indutor de tráfego
Da mesma forma que a criação de mais estradas induziu uma maior utilização do automóvel ao longo do século XX e no que levamos do XXI, a manutenção dessa procura induzida, justificada no futuro pelo facto de termos limpado o escape e a nossa consciência, manterá, ou aumentará até, a pressão sobre os sistemas urbanos e sobre os territórios circundantes. É por isso que, fora da COP26, entre activistas e urbanistas que, por todo o mundo, já abandonaram a defesa do modelo de cidade assente meramente na circulação, pedia-se que se discuta um futuro com menos automóveis na cidade (texto do The Guardian, em inglês), sejam estes menos ou mais verdes e mais ou menos inventivos, como o Commucycle, da Peloton (em baixo).
O urbanista Jaime Lerner já tinha avisado, há 50 anos, que o carro seria o cigarro do futuro. O que ele não imaginaria então, presumo, é que, tal como com o tabaco, nos ofereceriam algo para manter o "vício", mas que já não deita fumo. Os sucessores do urbanismo modernista, e organizações como a ONU, ou a UE, alertam que não há combate eficaz às alterações climáticas sem uma redefinição, urgente, dos limites e da forma do crescimento urbano, ainda mais quando sabemos que 70% da população mundial viverá em cidades em 2050. Se para acomodar sete mil milhões de urbanitas continuarmos a destruir solo arável, ecossistemas naturais, a impermeabilizar terrenos para acomodar carros e mais carros na rua, e a esticar as nossas cidades, confiantes que, de automóvel "verde", todos chegam onde quiserem, estaremos a estragar por um lado o que acreditamos estar a resolver de outra maneira.
Esta importante e necessária corrida para a electrificação do carro acontece lado a lado com um consenso em torno da ideia de que urge densificar para aproximar as pessoas dos serviços, dar urbanidade ao que é periurbano e disperso, requalificar para dar a mais gente motivos para não ter de ir a lado nenhum em máquina alguma, pelo menos movida a energia que custa produzir, só para encontrar o básico, oferecendo bom transporte público para se ir mais longe. Não se trata de cortar a liberdade de circular, trata-se de devolver tempo roubado em circulação (que, no caso de muito dele, até é sinónimo de se estar parado, no trânsito), para fazermos outras coisas, que provavelmente nos deixariam mais felizes. E mais próximos dos nossos objectivos globais.
Regressamos para a semana, com os Pés na Terra. Até lá, pode partilhar críticas e sugestões connosco, através do endereço acoentrao@publico.pt. Deixo-lhe, em baixo, mais algumas sugestões de leitura.
- A má qualidade do ar em algumas cidades levou a Comissão Europeia a processar Portugal;
- O país já tem, entretanto, uma lei de Bases do Clima. E isso melhorou a nossa posição internacional;
- Os Planos de Recuperação e Resiliência dos países da UE só cobrem 7% do investimento necessário no domínio ambiental;
- A UE vai barrar a entrada no espaço europeu de matérias-primas que contribuam para a desflorestação;E
- E em Portugal há 38 entidades a trabalhar para fazer de insectos matéria-prima para a alimentação;
- Há verbas da Transição Justa para apoiar sectores como os do Vidro e da Cerâmica, intensivos, no uso da energia, a tornarem-se mais eficientes.