O que vou fazer a esta Lei de Bases da Saúde?
Dezoito meses de pandemia serviram ao Governo para manter congelado um diploma do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, sem o qual a geometria do SNS vai variando.
Para quem acompanha com alguma regularidade o que se passa no sector da saúde em Portugal, não deixa de ser surpreendente a inacção dos partidos políticos quanto à demora do Governo em dar a conhecer o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (ESNS). Dezoito meses de pandemia têm-lhe servido para manter congelado um diploma sem o qual a geometria do SNS vai variando ao sabor do que de momento é avaliado como carenciado de resposta. Os mesmos 18 meses foram aproveitados pelos partidos políticos para se manterem em silêncio quanto àquele assunto. Nem uma iniciativa, nem uma pergunta, nada. Como se os principais responsáveis pela aprovação da Lei de Bases da Saúde (LBS) tivessem considerado que o trabalho estava concluído e coubesse agora ao Governo concluir o resto da obra, lavando daí as mãos e reservando-se para criticar o que em seu entender possa não se enquadrar nas suas concepções políticas. A sua vocação é essa, mas a sua missão vai muito além da sua vocação, exige iniciativa e fiscalização do que devia estar a ser feito e não está.
Tendo passado mais de dois anos sobre os acontecimentos que levaram à aprovação da LBS, as lições desse processo ficaram por aprender. O desinteresse a que foi votado o assunto pela maioria dos que em 19 de Julho votaram favoravelmente o diploma foi confrangedor. Como se substituir uma lei de 1990, que abriu a porta à promiscuidade entre o sector público e o sector privado, fosse matéria que podia esperar mais trinta anos. Foi só quando a sessão legislativa estava a chegar ao fim que algumas bancadas acordaram e deram conta que estavam a perder uma iniciativa política que todos acabaram a reivindicar como sua. E da mais alta importância, concluíram.
É inquestionável que cabe ao Governo produzir a legislação que regulamente muitas das disposições da LBS, entre elas a elaboração do ESNS. Entende-se que o tempo político do Governo não coincida com os tempos políticos das oposições. Contudo, a partir de certa altura, quando o esforço para conter a pandemia e os seus efeitos sociais começaram a dar mostras de que a situação tendia para a normalização, eis que no horizonte surge outro assunto que vai absorver a atenção e a energia do Governo e das oposições durante as próximas semanas, diríamos até 31 de Dezembro, o Orçamento do Estado para 2022.
Confortáveis na reivindicação de mais profissionais da saúde e mais dinheiro para o SNS, por aí se ficam os deputados, remetendo-se para segundo ou terceiro plano o continente onde aquele conteúdo vai ser lançado, sem se darem conta que o continente tem um nome, ESNS, que ainda não foi registado no Diário da República. É que será o ESNS que estabelecerá, conjuntamente com a política de saúde decorrente do que ficou consignado na LBS, o modelo de organização e funcionamento em que aqueles recursos podem ser mais bem aproveitados e aplicados da maneira que os resultados obtidos satisfaçam as necessidades que há muito esperam resposta.
De pouco vale criar um Grupo de Apoio às Políticas de Saúde, por exemplo, se ele não representar uma consequência e estiver enquadrado pela definição da política de saúde e da existência do ESNS. Porque a política de saúde é muito mais do que cuidados primários, cuidados hospitalares e cuidados continuados. Estes são, exclusivamente, os suportes materiais daquilo que importa fazer e do resultado que se espera alcançar. E isso ainda não está escrito em sítio nenhum. Além disso, começa a tornar-se incompreensível e absurdo haver deputados que vão discutir o orçamento do SNS para 2022 sem que estejam reunidos os pressupostos que tornem essa discussão coerente. Fazê-lo é estar a alimentar a gestão corrente de um serviço que o primeiro-ministro já reconheceu carecer de “alterações profundas”. Portanto, a primeira pergunta a fazer ao Governo nessa altura é, quais são as alterações profundas que tem em vista, caso a declaração não tenha sido um exercício de retórica, no rescaldo de um congresso.
Diremos, então, que, caso não se coloque explicitamente na agenda política a exigência de divulgação do ESNS, corre-se o risco de, prioridade atrás de prioridade, aquela peça estruturante do SNS acabar por ser remetida para sucessivos adiamentos até que o tempo a separe da LBS. Sabemos quem anda a fazer esse investimento, só não se percebe que quem devia estar alertado para isso não dê conta do que se está a passar.