Quem tem medo dos advogados?
A composição plúrima dos órgãos de gestão e disciplina dos Magistrados Judiciais, e também do MP, é uma garantia fundamental da cidadania e, dentro dela, a presença e papel dos advogados é fundamental.
A polémica que estalou pelo facto de o advogado do sr. Luís Filipe Vieira ser, também, membro do Conselho Superior do Ministério Público, trouxe-me à memória um caso cujos primórdios se situam há mais de vinte anos.
Estava em causa um concurso interno aberto em determinado organismo da Administração Pública tutelado pelo então secretário de Estado, José Sócrates, para provimento de um lugar na carreira Técnica Superior, ao qual se opunham apenas dois funcionários: um possuidor do grau de Doutor e outra, apenas do de Licenciado, mas cônjuge do director-geral desse organismo. O caso chegou a ser noticiado no Expresso sob o sugestivo título “Concurso à medida”, sendo uma das várias questões jurídicas que se colocaram a de saber se o princípio da proporcionalidade era observado quando, no aviso de abertura do concurso e numa escala de 0 a 20, se atribuía à posse do grau de Doutor 20 pontos e ao de Licenciado 18…
No recurso contencioso de anulação que foi interposto, o Conselho de Ministros estava representada por advogado, por coincidência também vogal do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF), tendo-se colocado a questão de saber se a norma constante do artigo 148.º, n.º 1, do EMJ, que permitia tal “cumulação”, devia ser julgada inconstitucional, por ofensa dos princípios constitucionais da independência dos tribunais, da igualdade das partes em juízo e do processo equitativo.
Tal como na situação actual, não estava ali em causa qualquer actuação concreta do referido advogado, no sentido de de alguma forma constranger o exercício da liberdade de julgar de quem de direito: era apenas a possibilidade de, em abstracto, a relação de pertença ao órgão de gestão e disciplina daquela magistratura ser factor de constrangimento da liberdade de julgamento, em prejuízo de uma das partes.
A questão subiu ao Tribunal Constitucional, onde uma formação composta por uma maioria por juízes de carreira, e da qual, aliás, também fazia parte a actual vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, acalmou os receios do recorrente.
No acórdão que proferiu (Acórdão n.º 148/2007), o TC esclareceu que tal norma não encerrava qualquer ofensa à Constituição, sublinhando que “a independência e imparcialidade dos juízes são asseguradas por meios institucionais e organizatórios que esbatem a relação individualizada entre o juiz e os membros que integram os órgãos de gestão e disciplina das magistraturas, designadamente aqueles que representam interesses das partes em processos em que tenham de intervir”.
Para o TC, a colegialidade e composição plúrima constitui uma primeira garantia; o facto da actuação do órgão de gestão e disciplina ser judicialmente sindicável, uma garantia adicional; finalmente, reportando-se àquele caso concreto, o TC recordou que – tal como agora sucede – não estava em causa nenhuma atitude concreta do advogado em causa que induzisse suspeita quanto à quebra dos valores de imparcialidade; e terminou por recordar que, quando ocorram circunstâncias que possam fazer suspeitar quanto à quebra da imparcialidade, a lei prevê meios concretos de reacção relativamente ao magistrado em causa.
É um caso verdadeiramente paradigmático pois, confrontado especificamente quanto à conformidade constitucional das normas que permitem que advogados membros dos órgãos de gestão e disciplina das magistraturas possam exercer o seu mandato no âmbito dos tribunais onde essas magistraturas exercem funções, não teve o TC dúvidas em declarar que a ordem constitucional não ficava afectada.
E se assim é relativamente ao CSTAF e ao CSM, no caso o facto de a magistratura do Ministério Público ser hierarquizada constituirá – digo eu – uma garantia adicional à cidadania.
A composição plúrima dos órgãos de gestão e disciplina dos Magistrados Judiciais, e também do MP, é uma garantia fundamental da cidadania e, dentro dela, a presença e papel dos advogados é fundamental. São os advogados que, por viverem o sistema judicial por dentro, têm o melhor conhecimento de causa para quebrar lógicas de aparelho ou solidariedades de corporação que porventura se sobreponham ao interesse dos cidadãos, porque são os representantes daqueles para quem o sistema de Justiça existe, a quem o sistema de Justiça deve servir e em nome de quem a Justiça é feita: são os representantes de todos nós.