Trinta anos de investimento em autoestradas não tornaram o país menos desigual. A ferrovia deve fazer melhor
O influxo de financiamento para investimento em infraestruturas possibilitado pela integração de Portugal na UE pouco ou nada beneficiou a ferrovia. O oposto sucedeu com a rodovia e, em particular, as autoestradas. Mas quais foram os impactos no território de todo este investimento?
O Governo português lançou recentemente o Plano Ferroviário Nacional (PFN), que pretende “afirmar o caminho-de-ferro como o modo de transporte de elevada capacidade e sustentabilidade ambiental” e “responder às necessidades de acessibilidade, mobilidade, coesão e desenvolvimento”. O desafio é grande. Em 2019, a dimensão da rede correspondia apenas a 70% do que era em 1952, ano em que atingiu o máximo de 3597 km. Temos uma das redes ferroviárias menos densas e menos competitivas entre os países da UE. Apesar do desígnio da modernização da rede proclamado pelos vários planos para o sector, na realidade o resultado final foi, muito frequentemente, o encerramento de linhas ferroviárias. Na década de 1990 foram encerrados mais de 700 km e só entre 2009 e 2012 encerraram outros 500 km de ferrovia. O desmantelamento das linhas ferroviárias foi quase sempre precedido pela redução dos níveis de serviço, a desarticulação de horários entre linhas e o desinvestimento em material circulante. Tudo isto levou à redução do número de passageiros e a consequente inviabilidade financeira de diversas linhas.
De facto, o influxo de financiamento para investimento em infraestruturas possibilitado pela integração de Portugal na UE pouco ou nada beneficiou a ferrovia. O oposto sucedeu com a rodovia e, em particular, as autoestradas. Se em 1986, no ano de adesão à então CEE, Portugal tinha uma das mais baixas dotações de autoestradas entre os países europeus, desde então a rede cresceu rapidamente. Em 2000 a densidade da rede já tinha ultrapassado a de países como a Alemanha e os Países Baixos, por exemplo. A extensão da rede cresceu a uma taxa média anual de 9% entre 1986 e 1990, 17% entre 1990 e 2000, e 5% entre 2000 e 2010. No total, a rede aumentou cerca de 2900 km desde a adesão à UE, tendo atingido o pico em 2013 com 3065 km. Temos, atualmente, a quinta maior densidade de autoestradas per capita da UE27 e a segunda maior densidade entre os países da UE15.
A contribuição dos fundos europeus para o desenvolvimento regional foi essencial para a construção da rede de autoestradas. Num estudo realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, os economistas Alfredo Marvão Pereira e Rui Marvão Pereira mostram que o investimento rodoviário representou a maior parte do investimento feito ao abrigo dos sucessivos quadros financeiros comunitários, a saber: QCA I (1989-1993), QCA II (1994-1999), QCA III (2000-2006) e QREN (2007-2013). O investimento rodoviário representou 28%, 31%, 32% e 26% do investimento total no QCA I, QCA II, QCA III e QREN, respetivamente. Só o investimento em autoestradas representou 5%, 7%, 14% e 5% do investimento total, respetivamente. Os autores concluem ainda que o efeito económico das autoestradas diminuiu acentuadamente ao longo do tempo, o que sugere que parte dos últimos investimentos já não seriam muito necessários.
A partir de finais dos anos 1990, o desenvolvimento da rede foi feito através de parcerias público-privadas (PPP), o que, ao deslocar no tempo os custos financeiros do Estado com a construção e manutenção das autoestradas, permitia que os governos cumprissem as restrições orçamentais e de endividamento estabelecidas pelo Tratado de Maastricht e pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento. A popularidade deste instrumento financeiro em Portugal foi tal que temos, entre os países da UE27, o quarto maior mercado de PPP em termos absolutos e o maior mercado em proporção do PIB. Das atuais 21 PPP rodoviárias (cerca de 85% das autoestradas), quatro foram estabelecidas entre 1995 e 1999, sete entre 2000 e 2005 e nove entre 2006 e 2010.
Mas quais foram os impactos no território de todo este investimento? Terão as autoestradas contribuído para uma maior coesão regional? Num estudo recente analisámos a relação entre a construção de autoestradas entre 1981 e 2011 e a forma como a população e o emprego cresceram ao nível local no mesmo período. Os nossos resultados indicam que as autoestradas facilitaram o aumento da população e do emprego nos municípios por onde passam, mas promoveram, também, uma maior suburbanização, uma vez que o impacto no crescimento da população foi particularmente forte nos municípios suburbanos das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. O impacto no crescimento do emprego foi inferior ao impacto no crescimento da população nestes municípios, o que não surpreende, na medida em que as autoestradas terão induzido um acréscimo nos movimentos pendulares. Uma das principais conclusões do nosso estudo é que as autoestradas acentuaram a coexistência de uma dinâmica de suburbanização dispersa em grande escala com a polarização do sistema urbano em torno de duas vastas aglomerações urbanas que, note-se, concentram cerca de metade da população e do emprego nacionais, mas cujos núcleos centrais perderam peso (Lisboa e Porto perderam 37% e 34% da população entre 1981 e 2019, respetivamente).
Ora, a expansão urbana de tipo disperso e fragmentado, que as autoestradas facilitam, acarreta normalmente custos sociais significativos, denominados de custos externos e custos “escondidos” no jargão dos economistas. Os custos externos incluem o congestionamento, a poluição do ar e sonora e a sinistralidade rodoviária. Os custos escondidos referem-se ao facto de a urbanização dispersa implicar uma maior perda de solo e biodiversidade, o aumento das despesas municipais com a provisão de infraestruturas e serviços públicos básicos, e a maior necessidade de subsidiação do transporte público.
O crescimento das cidades, a suburbanização e o agravamento das assimetrias regionais são processos complexos e as suas causas não se esgotam, naturalmente, nas dinâmicas induzidas pela expansão da rede de autoestradas. No entanto, dada a escala dos investimentos realizados ao longo de três décadas, não é de estranhar que aquelas tenham influído de modo significativo na forma como a população e o emprego se distribuíram pelo território. Num momento em que o país já iniciou um grande ciclo de investimentos na rede ferroviária, importaria investigar mais e aprender com as experiências deste passado recente. Tal será útil para desenhar políticas públicas e identificar investimentos complementares que incentivem eficazmente a transferência de passageiros e mercadorias da rodovia para a ferrovia (um dos objetivos do Plano Ferroviário Nacional) e, em termos mais gerais, permitam que a ferrovia possa contribuir para o desenvolvimento socioeconómico, a coesão territorial e a sustentabilidade ambiental em Portugal.
Patrícia Melo, Professora Associada no ISEG e Investigadora do REM/UECE, Universidade de Lisboa
Bruno Rocha, Investigador no ISEG e REM/UECE, Universidade de Lisboa
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico