O centenário do Parque Nacional da Peneda-Gerês, no dia do seu 50.º aniversário

A Peneda-Gerês anda frequentemente nas bocas do mundo, mas raramente para sobre ele se tratarem as questões com cujo debate se reconheceria estarmos perante um verdadeiro parque nacional, a mais importante das áreas protegidas da rede nacional, que carece de projetos de preservação da natureza ao nível do que de melhor se faz na Europa.

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ADRIANO MIRANDA / PUBLICO

O Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG) nasceu há cinquenta anos, pela mão de quem nele conferiu um conjunto de valores, principalmente naturais, que importava conservar. O conceito de parque nacional originário dos EUA (Yellowstone, 1872) implicava a sua adaptação a um território parcialmente habitado por comunidades humanas herdeiras de uma presença antiga, autora de um património cultural também valioso. Quem com ele sonhou, avançou ideias para que se convergisse num objetivo que teria que ser desejado e assumido pelas populações residentes. Foi-lhes apontado um papel participativo, decisivo para o alcance desse sonho.

Logo à partida reconheceram-se danos que importava enfrentar e corrigir. Meio século depois, estamos longe da meta desejada e os passos mais recentes apontam mesmo um afastamento do foi sonhado em 1971. Problemas de fundo mantiveram-se, o projeto afastou-se do carácter nacional que à nascença lhe foi atribuído. Perdeu autonomia, meios humanos e materiais. Ignorou-se o requisito maior que a natureza do PNPG impõe. Uma estratégia global para salvaguardar o seu território como um todo.

Para as próximas cinco décadas, tantas quantas as que o PNPG completa neste 8 de maio, enderecei esta semana aos seus órgãos gestores, uma extensa reflexão, que este artigo resume, na esperança de que o resultado esperado das medidas propostas possa ser apreciado no dia do centenário do nosso único parque nacional, em 2071. A natureza em geral, a do Parque Nacional em particular, requerem tempo para recuperar.

Conhecer para proteger

É um facto que só se valoriza e protege aquilo que se conhece. Mas tal principio não pode levar a que a usufruição do património se transforme no principal objetivo. O investimento deve concentrar-se na proteção e na recuperação do património, no restauro dos ecossistemas, das populações de flora e fauna e não no seu consumo. Tal pressupõe o reconhecimento de que o estado geral do Parque Nacional é de grande fragilidade. Por mais que encantem as paisagens belas do seu singular relevo serrano.

Impõem-se desde logo medidas que o protejam e reforcem o ordenamento do território nomeadamente restrições ao trânsito motorizado em vias que ameaçam espaços prioritários para a conservação da natureza. De entre elas destaca-se a necessidade de interditar definitivamente o trânsito motorizado na estrada da Geira Romana, um condicionamento eficaz nos acessos em torno do vale do Ramiscal e, nos períodos de maior pressão, entre as Portelas de Leonte e do Homem, com a tomada de medidas concertadas a partir da vila do Gerês ou mesmo da entrada do Parque em Rio Caldo. As cascatas do rio Homem e a mata de Albergaria não podem continuar sujeitas a uma pressão humana intolerável que viola a Área de Ambiente Natural e fragmenta a Área de Proteção Total.

A caça no Parque deve caminhar para a extinção. Até lá importa limitar o seu exercício aos que nele residem, também para uma melhor gestão do relacionamento entre a população e os predadores naturais. Algo semelhante se aplica ao pastoreio. Num futuro próximo o território do PNPG deve ser apenas usufruído pelo gado pertença de residentes, em condições que impeçam a violação das zonas naturais mais sensíveis. A preservação da natureza tem que ser o objectivo único numa parte do território de um parque nacional. Toda a Área de Proteção Total deve ficar livre de qualquer exploração humana.

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Mais meios humanos

A grande debilidade do corpo de vigilância do PNPG é evidente. Impõe-se um reforço urgente de meios humanos, uma dignificação da sua importante missão. Também o reforço de postos fixos de vigilância contra incêndios em zonas como os vales do Cabril e do Ramiscal é inadiável. Este último levanta outra questão. A imperiosa necessidade da redefinição dos limites do Parque Nacional.

A preocupação de melhorar as condições de vida de quem reside no Parque é uma questão de justiça e um imperativo para que se garanta a sua salvaguarda. Se não é aceitável o discurso, politicamente correto, de que o que subsiste às comunidades residentes se deve, também não é tolerável que, para elas, não se concedam privilégios por coexistirem num território onde, para benefício de todos, foi delimitada uma área protegida. Impõem-se medidas que apoiem o confinamento do gado, uma atribuição de indemnizações por prejuízos causados pelo lobo eficaz e até acrescida por uma compensação pelo dano afetivo que a perda dos animais implica. A população residente requer apoios nas áreas da saúde, da educação, dos transportes. Não passadiços, baloiços ou parques temáticos, onde se derretem verbas destinadas ao «ambiente». Restaurar devidamente o património permitirá que a sua usufruição seja de algum modo paga por quem visita o território. Dividendos a reinvestir no património e nas populações.

A recuperação do coberto vegetal e a eliminação das espécies exóticas infestantes são a grande prioridade. A ligar as várias parcelas de maior interesse natural impõe-se criar um corredor de floresta nativa, uma mancha mais ou menos contínua que atravesse todo o território. Uma «faixa» de vegetação característica dos carvalhais com o objetivo de reforçar núcleos residuais onde sobrevivem populações fragilizadas, algumas à beira da extinção, de fauna e de flora endémica da região. Uma intervenção baseada na recolha de sementes originárias do que subsiste.

Proteger árvores antigas

E se a ampliação dos resquícios de floresta é importante, evitar que eles se percam exige que de imediato se protejam pequenos bosquetes de grandes exemplares arbóreos, o que resta das árvores antigas, atualmente isoladas pelo fogo, ameaçadas pelos matos e pelas queimadas que foram dizimando tudo o que com elas convivia, como manta morta que as chamas «limpam». Espalhadas um pouco por todo o território do Parque Nacional devem beneficiar de ações cirúrgicas que as isolem da pressão do gado e promovam a regeneração natural. Bosquetes em que se destacam diminutas manchas de azevinhos centenários e os pinheiros-silvestres primitivos que o PNPG em boa hora decidiu disseminar.

Ramificações deste grande corredor de floresta autóctone para áreas rurais devem ser benefício futuro para populações residentes. Neste contexto importa insistir na reconversão das manchas de pinheiro-bravo, como bem defendia Lagrifa Mendes no projeto inicial.

Nesta proposta de plano de ação para os próximos cinquenta anos do Parque Nacional importa aludir ao novo modelo de cogestão, recentemente implementado na Peneda-Gerês e com o qual a Tutela do Ambiente transferiu para uma equipa alargada, presidida por um dos autarcas, a gestão da área protegida nomeadamente a definição de um plano de ação e das prioridades de investimento. Chegou a hora do poder autárquico ser coerente com o discurso crítico que ao longo destas cinco décadas assumiu contra a autoridade nacional do ambiente (ICNF e organismos que o antecederam) promovendo a grande reconversão do coberto vegetal que se impõe. E não continuar a ver no PNPG uma mera região de turismo que se aproveita da chancela área protegida.

Reintroduzir fauna

Trabalhar com espécies de fauna selvagem é motivador. Fazer regressar espécies extintas é particularmente aliciante. A execução da maioria das ações anteriormente defendidas não deixará de dar frutos na recuperação de populações de animais selvagens, das aves de montanha para as quais este território (nomeadamente os dois planaltos de Laboreiro e da Mourela) constitui o limite sul da sua área de reprodução no noroeste da Península Ibérica. A sobrevivência de répteis e anfíbios e de uma infinidade de invertebrados também as requer, uma vez que se encontram particularmente expostas aos efeitos das alterações climáticas.

Mas há espécies que exigem ações dedicadas. Entre elas ressalta a importância da prossecução das medidas para recuperar a população de águia-real espécie que promoverá uma interação saudável com a crescente população do ícone maior da fauna geresiana, a cabra-montês, cujo regresso é sem dúvida o grande acontecimento destes cinquenta anos. A recuperação das populações de presas e a salvaguarda dos locais de reprodução estão condicionadas pela prática da caça e pela ausência do ordenamento do pastoreio e do turismo, já abordados.

São questões que condicionam também o regresso ao território de outras espécies que se extinguiram, como o lince-ibérico e o quebra-ossos, os quais, beneficiando de projectos ibéricos que se aplaudem, estão mais próximos. O movimento europeu de rewilding em que o Estado português tem que se empenhar sugere uma outra espécie cuja evolução na Península Ibérica tem gerado notícias empolgantes. A recente visita de um urso-pardo a Trás-os-Montes veio confirmar a possibilidade dos territórios fronteiriços de Portugal poderem ser limites (mesmo que intermitentes) de uma área de ocorrência que se aproxima do nosso país. Se recuperarmos habitat. Campanhas de informação e sensibilização junto das comunidades residentes poderão levá-las a reconhecer o quanto beneficiarão com o regresso deste emblemático plantígrado à imagem do que aconteceu na cordilheira cantábrica.

A Peneda-Gerês anda frequentemente nas bocas do mundo, mas raramente para sobre ele se tratarem as questões com cujo debate se reconheceria estarmos perante um verdadeiro parque nacional, a mais importante das áreas protegidas da rede nacional, que carece de projetos de preservação da natureza ao nível do que de melhor se faz na Europa. Não bastam títulos e estatutos. Não bastam investimentos financeiros avultados, se o seu consumo contribui para degradá-lo. O erro maior é medir o valor do PNPG pela quantidade de visitantes que a ele acorrem. Que o dia 8 de maio de 2021, simbolicamente importante, seja o ponto de partida de uma viragem. Que neste dia de meio século de vida se projetem as próximas cinco décadas, no final das quais, olhando para trás, se possa dizer que o sonho se concretizou, que nestas serranias do noroeste ibérico subsiste o mais expressivo contributo dos portugueses para a biodiversidade do planeta que a todos nós cabe assumir.

Membro do Conselho Estratégico do Parque Nacional da Peneda-Gerês em representação das ONGA. O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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