Depender da bondade de estranhos
No Dia Mundial do Teatro, estamos desculpados de citar a Electra, de Sófocles, uma obra fundadora do teatro europeu: “Chegou a hora em que já não se trata de hesitar, mas de agir — e olhar em frente.”
Hoje, Dia Mundial do Teatro, o São João está encerrado, à semelhança do que sucede com tantos outros teatros. Assim permanecerá por vários meses, até que reabra, renovado e reequipado, no Outono. Desabitados em tempos de confinamento, os seis mil metros quadrados do São João foram sendo também esvaziados de equipamentos e tralhas enquanto Gábor Tompa dirigia os ensaios de À Espera de Godot, a tragicomédia de Beckett que se tem oferecido como parábola das experiências mais árduas da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. Num teatro quase devoluto, o espectáculo foi transmitido online, em directo. A dada altura, apontando para a plateia, Estragon faz notar: “Vazio não falta.”
Ontem, entregámos a chave deste Monumento Nacional a empreiteiros, mestres-de-obras, fiscais. Dentro de dias, terá início a obra de reabilitação do interior do São João e de renovação da arquitectura de cena. A operação, favorecida pela efeméride dos 100 anos do teatro arquitectado por Marques da Silva, é financiada por fundos comunitários, através do programa NORTE 2020, resultando de uma oportuna concertação de perspectivas entre o TNSJ, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte e os Ministérios da Cultura e do Planeamento. Há cem anos, os portuenses reergueram o São João, de que os europeus são hoje também construtores.
A felicidade da operação não deve, contudo, iludir-nos. Há muito que a cultura — que defino, antes de mais, como o território da criação e produção artísticas — se tornou um sobrevivente nas estratégias e instrumentos de investimento comunitário. Remota parece-nos já a época que gerou um Programa Operacional da Cultura, autónomo e coerente, recebido como um marco na política cultural europeia. Presentemente, a cultura pergunta-se em que companhia será admitida. No quadro dos programas operacionais recentes, a cultura age como a criatura que entra no enquadramento da fotografia pondo-se em bicos de pés ou encostando-se a um parceiro, seja ele o património classificado, a inclusão social ou o turismo. A sua condição é hoje tristemente análoga à de uma personagem de Tennessee Williams: “Não importa quem sejas, eu sempre dependi da bondade de estranhos.”
Esta situação tem obrigado instituições, estruturas de produção e artistas a conformar-se a lógicas e objetivos que, por meritórios que sejam, se revelam agnósticos no que toca à importância de projectos artísticos e culturais estruturantes, com uma verdadeira vocação reticular, no desenvolvimento regional e nacional. Não é infrequente o contorcionismo narrativo que garanta essa conformação, criando toda a sorte de equívocos acerca do lugar da cultura e das artes.
Num momento em que se definem os programas de investimento comunitário para o horizonte 2021-27, importa afirmar a centralidade da cultura numa política de desenvolvimento integrado das comunidades e das regiões. Tornou-se já fastidioso o discurso sobre a relevância económica e social das artes: os dados disponíveis a nível europeu são abundantes, e persuasivos. Mas vale a pena considerar as tomadas de posição da Comissão Europeia, e delas extrair consequências. No início deste ano, Ursula von der Leyen apresentou o “New European Bauhaus”, emblema de uma mudança paradigmática e pedra-de-toque da renovação do projecto económico, ambiental e cultural europeu. O ciclope tecnocrático em que a União Europeia se teria convertido começa a dizer que é necessário “responder às necessidades que vão além da nossa dimensão material, inspirados na criatividade, na arte e na cultura”. Mais: voltou a empregar termos que o progresso material teria asfaltado, como “alma”. Trata-se de uma manobra de diversão — ou o apelo é para levar a sério?
Não há por que demonizar o betão, mas uma viragem como esta não ocorrerá mantendo a cultura numa posição de menoridade. Assumir os desígnios do conhecimento e da inovação, do diálogo intergeracional ou da inclusão social, remetendo as artes para o rodapé, seria, de resto, um contra-senso. É urgente inscrever a cultura no coração do projecto europeu, com consequências directas na definição dos instrumentos nacionais e regionais de financiamento comunitário. No Dia Mundial do Teatro, estamos desculpados de citar a Electra, de Sófocles, uma obra fundadora do teatro europeu: “Chegou a hora em que já não se trata de hesitar, mas de agir — e olhar em frente.”