O pisco
Não era bullying. Era uma ideia de diferença pouco fundamentada. Não encontro ainda palavra que resuma isso. Sei que a minha percepção e consciência tardias acabaram por fazer de mim, melhor.
Queria encontrar uma palavra portuguesa que resumisse boa parte das situações que vivemos na infância e para as quais nunca encontramos nome: é difícil porque há muitas experiências dentro dessa experiência. Acredito agora que fez parte (ou fará) da vida de todos.
Diria que uma certa ideia de segregação social acaba por ter a capacidade de nos fazer sentir pequenos, menores, minúsculos. Iludir-nos para a seguir nos roubar o brilho. Transformar a manhã luminosa em dia fosco. Fazer da surpresa, o terror. Da criança, o adulto involuntário.
Era possível de facto perder-me em analogias para descrever essa experiência de uma alegada discriminação. Eu achei, no meu tempo, que era só falta de amizade.
Nunca me vou esquecer do aniversário dela: 29 de Março. Isso vem do tempo em que fixávamos para a vida inteira o aniversário dos outros. Os que vêm a seguir, tempos depois, sofrem porque já não são abrangidos pela frescura da nossa memória. Sei números de telefones fixos há 40 anos. Por que razão ocupam eles o meu espaço quando queria dar lugar a outros? Um estacionamento proibido.
Ela era bonita, inteligente e tinha uns pais talvez mais sintonizados com o crescimento dela e dos irmãos, mais do que os meus. Os meus tacteavam: davam tudo quando não tinham recebido nada. Os meus têm um valor infinito. Pelo sacrífico com que deram, não tendo recebido antes.
Ela tinha uns assomos de pequena burguesia que ainda não estavam descritos no meu manual de crescimento. Os gostos, os amigos que vinham de fora, a forma como apoucava os outros que eram só os miúdos da escola.
Eu passava tardes a brincar em casa dela mas tudo ali era difícil de conquistar: o apreço, o afecto, até a generosidade de um lanche (coisa que não percebia se faltava por necessidade ou por punição). Não havia. Passávamos ao lado de tudo o que fosse dar. Partilhar.
Eu apenas respirava o espaço.
Lembro-me de a mãe dela tricotar camisolas lindas e eu pensar que um dia, uma delas, seria minha. Havia lógica nessa oferta: eu era a miúda que ali estava apesar de tudo. Apesar de ser “o pisco” como me chamava o pai dela, apesar de ter menos. Menos de tudo. Cheia de amor (descobri depois).
Nenhuma camisola nunca foi minha. Nunca se estenderam os braços. Havia até uma brincadeira sádica de me ser prometido um presente especial no meu aniversário, e, nesse dia, o presente ser a coisa mais insignificante que havia lá por casa.
Eu não percebia, entristecia-me apenas. Emudecia. Um bolo que se desfazia em migalhas.
Era o pai dela num tom ainda hoje por explicar a chamar-me “pisco”: talvez por ser frágil e estar sempre doente. O que ele não sabia é que eu tinha mesmo todos os sonhos e palavras em mim.
Sabe-se lá a razão desta química (poder?)? Ela chamava-me para brincar lá em casa. Pelo menos durante o Inverno e a Primavera. Depois vinha o Verão e com ele chegavam os seus amigos da grande cidade. Não queriam saber do ‘pisco’ para nada. Ela então deixava de me conhecer e ignorava-me uma estação inteira.
Durante muito tempo não percebi nada disto. Ou não quis perceber esse entendimento do mal. Concluía apenas não ser digna da sua atenção, talvez (pensava eu em mil justificações) por ser frágil, mais pobre, não ter camisolas bonitas tricotadas mas apenas as saias feitas pela costureira que nunca saíam como eu as sonhava. Havia tanto no meu mundo escasso para ela se desprender…
Depois do Verão, com os amigos já de partida, ela voltava a mim. Voltávamos às brincadeiras lá em casa. Eu passava pela mãe tricotando as camisolas que nunca seriam minhas, pelas ilusões de criança que nunca deviam ser desmanchadas assim como uma camisola que saiu mal.
29 de Março, o aniversário dela. Um dia descobri que a minha necessidade epidérmica de querer fazer justiça tinha também a ver com isto: com esta pequenina discriminação cirúrgica a que fui sujeita durante anos.
Nunca mais vi a criança que me fazia crer que o meu aniversário ia ser inesquecível. Nunca percebi se tinha prazer em ver-me ainda mais frágil e pequenina na hora da descoberta.
Não era bullying. Era uma ideia de diferença pouco fundamentada. Não encontro ainda palavra que resuma isso. Sei que a minha percepção e consciência tardias acabaram por fazer de mim, melhor.
Não há um tempo certo para chegarmos às coisas. Importante é que cheguemos.
Sorrio neste equilíbrio que a vida nos dá.