A Família Confinada: “Os nossos filhos não precisam de superpais, precisam de pais suficientes”
Ana Stilwell, cantora, compositora e mãe de quatro; Júlio Machado Vaz, médico psiquiatra; e Vera Ramalho, psicóloga clínica, juntaram-se nos 31 anos do PÚBLICO para uma conversa sobre como as famílias estão a lidar com o confinamento.
Atravessamos todos a mesma tempestade. Mas há uns que seguem em barcos a remos e outros que vão de iate. A analogia é do psiquiatra Júlio Machado Vaz, já na recta final da conversa A Família Confinada, que decorreu ao fim da manhã deste domingo, no âmbito dos 31 anos do PÚBLICO. Mas, a ideia de que, nas famílias, o confinamento tem sido vivido a vários tempos, dependendo das condições, nomeadamente financeiras, esteve sempre presente.
“Nós temos o privilégio de viver em Sintra”, contextualiza Ana Stilwell, co-autora do Birras de Mãe, que o Ímpar publica desde o início da pandemia. “[Em Sintra, temos] acesso ao campo, estamos num sítio onde nos podemos esquecer durante um bocado que estamos neste estado.” A psicóloga clínica Vera Ramalho concorda, porque “sabemos que o vírus não toca a todos da mesma maneira”, e reforça: “Há duas franjas de famílias: uma, conseguiu estreitar laços com os filhos; outra, onde as consequências foram mais graves”, fruto do acentuar das desigualdades, da perda de rendimentos ou por se viver num apartamento muito pequeno.
E não há confinamento como o primeiro. No início, recorda Ana Stilwell, “sentimos uma espécie de adrenalina por estarmos a viver uma coisa única”. Também para Júlio Machado Vaz, “não há comparação entre o primeiro e este confinamento”. “No primeiro, havia a ideia de que se nos portarmos bem, vai correr bem; no primeiro, as pessoas estavam a fazer o melhor que podiam porque viam a luz ao fundo de um túnel não muito grande.”
Desta vez, o cenário é distinto, defende, porque o túnel aumentou e “a ideia do ‘isto veio para ficar’ instalou-se em muitos”, contribuindo para o afrouxamento das precauções, para o aumento da fadiga, para a menor percepção do risco. “As pessoas estão sedentas de liberdade”, resume, não deixando de chamar a atenção para o facto de as angústias serem “diferentes consoante as faixas etárias e socioeconómicas”.
Também Vera Ramalho considera que “o segundo confinamento trouxe mais exaustão”. “Os pais estão muito sobrecarregados: trabalham, têm as tarefas domésticas, cozinham a dobrar, acompanham os filhos…”. E, além disto, e transversal a todos, há que contar com o peso da “privação de contacto com o resto da família”, salientando “o papel muito importante” da tecnologia, que ajudou a criar uma ponte com os avós e outros familiares.
Ecrã: mal-te-quero, bem-te-quero
A situação pandémica veio pôr muitas certezas em causa. “Nós, pais, fomos bombardeados com a ideia de que isto [de estar ao ecrã] é horrível e que mais do que duas horas [por dia], não.” Mas, subitamente, não só a escola passa pelo ecrã, como os momentos de lazer, a jogar ou a ver algum programa, e os de socialização, sendo através deles que se mantêm em contacto com os amigos. Mas, apesar de se saber isto, “as culpas das mães não confinam”, refere Ana Stilwell. E há tanto a alimentar a culpa, sendo isso, segundo esta mãe, que “mais desgasta e cansa”: “Estar a trabalhar e com culpa de não estar com eles, estar a preparar douradinhos e pensar que deveria estar a cozinhar algo mais saudável, estar a ver uma série para descansar e pensar que devia estar a estimulá-los.”
Porém, Júlio Machado Vaz está certo de que “os nossos filhos não precisam de superpais, precisam de pais suficientes”, até porque “se isto tivesse acontecido há 20 anos, seria muito pior”. “Abençoada tecnologia”, declara, lembrando que há duas décadas teríamos, na maioria dos casos, apenas o acesso a um telefone físico.
Mas, “isto não começou com a pandemia”, alerta o psiquiatra. “Já antes estávamos a assistir a um pequeno dilúvio de pessoas, sobretudo mais jovens, que estavam refugiadas numa realidade virtual.”
No entanto, todos estão de acordo: a ligação ao ecrã faz aumentar os níveis de inércia. Mesmo em situações que supostamente são privilegiadas: “É assustador ver como é difícil tirar os nossos filhos de casa”, queixa-se Ana Stilwell, considerando que o facto de “eles não quererem sair” ser “verdadeiramente preocupante”.
“É difícil entusiasmá-los para sair quando há limitações”, começa por dizer, dando o seu caso como exemplo: “Eu tenho um jardim, ao que muitos dizem ‘ai que bom’, mas é difícil convencê-los só a ir ao jardim. Por mais que seja um privilégio – e eu sei que é. Alguém que esteja num apartamento no meio de uma cidade vai propor o quê: ‘Vamos andar a pé, para cima e para baixo na mesma rua’? É muito difícil isso ser um estímulo interessante para a criança.”
Vera Ramalho tem observado nas suas consultas relatos que vão ao encontro do que Ana Stilwell diz: “Noto, neste segundo confinamento, que as crianças, e também os adultos, têm-se esforçado menos, têm estado mais desanimados com as saídas, com o exercício”, alertando para o impacte deste elemento na saúde mental, já que o “o exercício físico ajuda a lidar e a conter as questões relacionadas com a ansiedade”.
Por outro lado, expõe a clínica, “algumas crianças de alguma forma começam a habituar-se a estar em casa”, sendo que para algumas “o estar em casa é uma coisa boa por não estarem a ser obrigadas a sair da sua zona de conforto”, o que se aplica, por exemplo, em “situações de ansiedade social, de bullying”, percebendo ser “um alívio”, mas com “um reverso da medalha complicado”, já que está a ser reforçado o sintoma das dificuldades sociais, considerando que, nestes casos, “o desafio vai ser desconfinar”.
Júlio Machado Vaz concorda: “Suponhamos alguém que sofre de agorafobia, ou seja que tem fobia aos espaços abertos, de repente dizem-lhe ‘tem que ficar em casa’: (…) o quadro a curto prazo é quase o paraíso”. Mas, na realidade “reforça-se um sintoma”.
“A saudade do toque é evidente que é psicológico”, mas “não tem a ver só com os nossos sentimentos, com as nossas saudades”, alerta. “O toque é indispensável ao crescimento saudável físico e psíquico – temos estudos, infelizmente, debruçando-se sobre instituições que tratavam as crianças de uma maneira com falta de afecto, de socialização, de toque, e as consequências para essas crianças foram pesadas.” Daí, diz, a urgência de abrir as escolas para os mais pequenos, com os quais será necessário “um autêntico desmame”, pelo facto de algumas crianças poderem revelar dificuldade em compreender por que têm de deixar de ter os pais, ou pelo menos um deles, 24 horas por dia. Isto, com crianças pequenas. Mas, “os adolescentes têm outras angústias”, adverte, assim como os mais velhos terão outras, dando o exemplo do médico e investigador Manuel Sobrinho Simões, o director do PÚBLICO por estes dias de aniversário, que se queixa, aos 73 anos, de lhe estarem “a roubar os últimos anos” de vida.
Ou seja, dentro de uma mesma família, defende o psiquiatra, os motivos de ansiedade e de angústia são diferentes: os mais velhos sentem ser muito triste chegar a esta a altura, em que lhes resta pouco tempo, e não poderem aproveitar; os mais novos têm de decidir se têm ou não um filho, se abrem ou não um negócio, se pedem ou não um empréstimo, ou seja, preocupados com um futuro possivelmente mais longo, depois de terem passado por uma crise económica há dez anos.
O luto é para ser sentido
O primeiro passo para ultrapassar a angústia, diz Júlio Machado Vaz, é falar sobre as questões, primeiro de tudo em família. É que, defende, neste momento, apresentar algum nível de ansiedade ou de tristeza, não constitui um diagnóstico psiquiátrico, arriscando que “não estar ansioso, não estar triste, é mais preocupante”, tendo sempre consciência de quando é preciso pedir a ajuda de um técnico.
Vera Ramanho acrescenta: “Pedir ajuda não deve ser visto como um sinal de fraqueza.” Mas, sublinha, antes disso é preciso “aceitar as emoções: as positivas e as negativas”.
No entanto, uma das coisas com que as famílias tiveram de lidar ao longo deste último ano foi com a perda sem hipótese de despedida, e às vezes sabendo que se foi o responsável pela transmissão do vírus.
“O luto, com a sua tristeza com a sua saudade, é perfeitamente normal”, sendo que medicar durante este período não constitui uma boa ideia, equaciona Júlio Machado Vaz. “Todos temos que fazer lutos: ou simbólicos ou literais.”
Mas “um luto que junta a culpa do ‘fui eu que transmiti [a doença]’”, considera o psiquiatra, carece de mais empenho por parte dos psicólogos, ainda que também aqui o aceitar seja essencial: “O profissional deve primeiro aceitar o sentimento de culpa e depois tentar, em paralelo com a pessoa, reduzir isso à sua dimensão real.” E remata: “Porque dizer que isso [da culpa] não tem importância nenhuma, é não perceber a natureza humana.”
Com as crianças passa-se o mesmo, considera Vera Ramalho, aconselhando os pais a aceitarem os sentimentos da criança, incluindo a tristeza.
O confinamento uniu os casais
Estar fechado no mesmo espaço com as mesmas pessoas o tempo inteiro e sem intervalos pode ser causa de desgaste nas relações, sobretudo nas que já apresentavam fissuras. No entanto, nem todos os casos observados reflectem esta realidade.
“Falando sobretudo a nível dos casais, mas que se pode estender a toda a família, as relações que são sólidas aguentam-se melhor sob stress”, começa por dizer Júlio Machado Vaz, ressalvando, no entanto, que “a generalização se afasta sempre da vida real”. “Já vi casais que, estando à beirinha de uma separação, [com o confinamento] reorganizaram as suas prioridades, (…) acabando por perceber que aquilo que os unia era mais forte.”
Além disso, recorda, ao longo deste período ouviu “muita gente dizer que isto foi profundamente gratificante”, admitindo estarem “mais unidos como casal e como família” do que antes.
Vera Ramalho aponta que “há casais que [no confinamento] descobriram coisas um no outro”. Por outro lado, ressalva, “quando há crianças pequenas pode ser um pouquinho mais complicado”.
Mas, mesmo nas situações menos satisfatórias, há aprendizagens a retirar, como “baixar as expectativas que temos sobre nós próprios”, diz Ana Stilwell, aceitar o facto de “não ter tudo sob controlo”, sublinha Vera Ramalho, ou a “saborear o momento” e a ser mais solidário, estima Júlio Machado Vaz. Ainda assim, o último não deixa de lembrar o professor e psicanalista Carlos Amaral Dias (1946-2019) que costumava dizer: “Aprendi muito com o meu AVC, mas dispensava-o bem.”