As passagens racistas em Os Maias justificam nota pedagógica — defende investigadora

A Associação de Professores de Português (APF) considera que uma leitura da obra de de Eça de Queirós implica a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens.

Foto
Fotografia de Eça de Queirós numa exposição organizada em 2018 na Fundacão Gulbenkian a propósito dos 130 anos da publicação do romance Daniel Rocha

Uma investigadora cabo-verdiana identificou em Os Maias, de Eça de Queirós, várias passagens racistas que na sua opinião não retiram valor à obra literária, mas justificam a inclusão de “um comentário pedagógico”, para que a questão racial não seja ignorada.

“A inferioridade dos africanos e o desdenho pelo negro ou qualquer aspecto relacionado à raça negra é presente na linguagem do narrador e reforçada através de acções e pensamentos de personagens e da idealização da branquitude em crianças, homens e principalmente mulheres”, disse Vanusa Vera-Cruz Lima, em entrevista à agência Lusa.

Professora de Português na Universidade de Massachusetts Dartmouth, nos Estados Unidos, onde está a tirar o doutoramento em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros, Vanussa Vera-Cruz Lima faz questão de sublinhar que “as passagens raciais não retiram nem adicionam o valor que esta obra representa na literatura portuguesa”, mas criam “oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”.  

A investigadora, que leu Os Maias pela primeira vez durante o ensino secundário, em Cabo Verde, quando Eça de Queirós lhe foi apresentado como “um dos mais importantes escritores da literatura portuguesa”, voltou à obra no âmbito do programa do seu doutoramento. “Penso que é importante separarmos o romance, que é uma das maiores obras de arte da cultura portuguesa, das passagens racistas nela encontradas”, disse, acrescentando que o que está em causa na sua análise é a obra e não o autor, Eça de Queirós, pois “para tal seria preciso um estudo muito mais aprofundado, investigação profunda sobra a vida dele e seus escritos profissionais e pessoais”.

Segundo a investigação de Vanusa Vera-Cruz Lima — que para esta análise recorreu à teoria crítica da raça, uma área de pensamento teórico contemporâneo que “revela como o racismo molda a realidade quotidiana do mundo” — a linguagem do narrador “reproduz a superioridade da raça branca sobre a raça negra, evidenciada através do discurso, frases, escolha de palavras, pensamentos das personagens de que a raça branca merecia ter o poder absoluto sobre a raça negra”.

“Ao celebrar extravagantemente a branquitude, o romance envia uma mensagem de que a negritude não é algo de que se orgulhar e, portanto, como o preto e o branco estão sempre em oposição, a glorificação de um, rebaixa o outro”, referiu.

Uma das passagens que a investigadora usou para exemplificar a sua afirmação consta do capítulo XVI da obra, escrita em 1880: “Ela [Maria Eduarda], por seu lado, loira, alta, esplêndida, vestida pela Laferrière, flor de uma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas”.

Para a doutoranda, “todas as personagens do romance são um produto do ambiente em que o branco é considerado superior em relação ao negro”, embora estas possam “ser divididas em camadas com diferentes intensidade, consciência e intenção”.

“João da Ega é o personagem em que o racismo mais se evidencia. De acordo com Ega, da mesma forma que Portugal aspira ser ‘civilizado’, os negros tentam agir como brancos fantasiando e vestindo a jaqueta do seu mestre”, ilustra.

Segundo a investigadora e docente, “há dois excertos em que João da Ega evidencia essas ideologias de forma bem intencional, quando descreve, em eventos sociais, a sua posição em relação à escravatura, defendendo-a para garantir os confortos da vida, e numa reflexão com Carlos da Maia, no final do romance, em que ele revela uma forte aversão ao facto de os negros estarem a fazer um esforço enorme usando certos acessórios para serem considerados imensamente ‘civilizados’ e ‘imensamente brancos'”.

Escreveu Eça (capítulo XII): “Ega declarou muito decididamente que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas...”.

Vanusa Vera-Cruz Lima cita uma outra passagem do capítulo IV em que a personagem João da Ega afirma: “Nós julgamo-nos civilizados, como os negros de São Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão”.

A doutoranda considera que a obra Os Maias é “uma ferramenta ideal para criar oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos atender às necessidades de todos os alunos”.

“É um material para explorarmos valores e comportamentos relacionados com a raça que existiam na época, mas que continuam a manifestar-se em vários aspectos da sociedade actual”, disse.

Para Vanusa Vera-Cruz Lima, o fim da leitura de Os Maias não é uma “solução” e nem esse o propósito da análise que fez à obra, mas sim a consciencialização das pessoas em relação aos “significados que até agora não têm sido observados, nem discutidos nos materiais escolares que acompanham a leitura da obra”.

E deixa a proposta de “criar um comentário pedagógico sobre esta faceta da obra, tal como se comentam outros significados”.

Seria, na sua opinião, uma abertura para “conversas corajosas sobre raça dentro do romance”, o que “não levaria à desvalorização da obra tão importante”.

“Mais do que explicar o contexto, é preciso discutir a obra, usando as lentes actuais, porque apesar de o romance ter sido escrito nos anos de 1800, faz parte da realidade de milhões de alunos espalhados pelo mundo lusófono em 2021”, referiu.

A posição da APF

Associação de Professores de Português (APF) considera que uma leitura de Os Maias implica a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens, assim como inserir esse discurso no contexto histórico.

Em declarações à agência Lusa, a propósito da análise de Vanusa Vera-Cruz Lima, o vice-presidente da AFP, Luís Filipe Redes, disse que não é precisa “uma análise muito profunda para compreender os preconceitos raciais presentes em Os Maias e em outros textos de Eça”.

“Apesar do seu realismo, o autor tem as limitações de um homem do século XIX. Para não termos visões preconcebidas relativamente aos outros, temos de interagir com eles, coisa que o Eça não terá tido oportunidade de fazer, não obstante a sua passagem por Cuba”, adiantou o professor de Português.

O docente sublinhou que “a perspectiva racista era dominante nos estudos antropológicos desse tempo”. “Eça era contra o tráfico de escravos e isso também se lê em Os Maias. A alternativa ao tráfico de escravos era o desenvolvimento de África que passava pela ocupação efectiva num movimento que se chamava “colonialismo”. É o que vemos no trajecto da personagem Gonçalo, da Ilustre Casa de Ramires”, comentou.

Por isso, Luís Filipe Redes considera que a leitura desta obra “implica a análise dos preconceitos raciais do discurso narrativo e das personagens e inserir esse discurso no contexto histórico. O que não podemos fazer é projectar juízos de valor formados nas vivências do nosso tempo sobre as acções dos homens do passado”, sublinhou.

Vanusa Vera-Cruz Lima, investigadora cabo-verdiana na Universidade de Massachusetts Dartmouth, nos Estados Unidos, onde está a tirar o doutoramento em estudos luso-afro-brasileiros, disse à agência Lusa que esta obra, publicada em 1888, “transmite uma imagem de África como sendo uma terra de “selvagens” e “incivilizados”, que resulta na justificação da exploração portuguesa neste continente”.

Na sua análise racial a uma das obras mais conhecidas de Eça de Queirós, autor de leitura obrigatória na disciplina de Português no ensino secundário, Vanusa Vera-Cruz Lima apresenta várias citações do romance que “evidenciam o processo de colonização” como tendo sido “necessário para a “salvação” das pessoas que viviam nas terras africanas”.

Para Ega, uma personagem com relevância neste romance, que relata a história de uma família ao longo de três gerações, em finais do século XIX, “a colonização tinha um outro “sabor”, porque transformaria os negros em pessoas “civilizadas” e, com isso, não haveria nada de pitoresco que chamasse a atenção aos turistas”, refere a autora da tese de doutoramento, para a qual fez esta análise racial, citando uma passagem da obra.

É também desta personagem a passagem: “Porque não se deixaria o preto sossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia à ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrário, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pitoresco”.

A investigadora sublinha que “o romance, e não necessariamente o autor, passa uma mensagem de que a colonização em África trouxe “salvação"”.

E escolheu outra citação do capítulo V da obra: “Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colónias todas as coisas belas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma suficiente da moral cristã; organizaram-se já os serviços aduaneiros... Enfim o melhor está feito. Em todo o caso há ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Luanda, precisava-se bem de um teatro normal, como elemento civilizador!”.

Vanusa Vera-Cruz Lima afirma que o propósito da sua análise é contribuir para “se repensar a forma como a obra é ensinada nas escolas, contribuindo para uma reflexão e expansão racial”. Garante a investigadora que não defende, com esta avaliação, ao fim da sua leitura no ensino português.

“Pelo contrário, este romance é uma ferramenta ideal para criar oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos atender às necessidades de todos os alunos”, disse.

E concluiu: “É um material para explorarmos valores e comportamentos relacionados com a raça que existiam na época, mas que continuam a se manifestar em vários aspectos da sociedade actual. Não vejo o cancelamento de sua leitura como uma solução.”

A agência Lusa contactou Carlos Reis e Isabel Pires de Lima, especialistas em estudos queirosianos, que optaram por não comentar as conclusões da investigação de Vanusa Vera-Cruz Lima.