As dunas
Muitas vezes lamento não termos a capacidade de assimilar o que vivemos nos primeiros anos de vida. Por algum motivo a memória guarda num compartimento esquecido esse tempo que só sabemos que existiu porque alguém nos mostra fotografias e diz: “Eras tu.”
É muito curioso como passei a ligar a minha infância à praia. Agora tudo o que vejo no retrovisor me leva a esse tempo como se o areal que se foi estreitando, fosse também a minha vida. É a erosão. Não escapamos a ela.
A praia, na verdade, ligo-a ao meu pai. O meu pai já nos levava de eléctrico à Praia das Maçãs no tempo em que eu não me lembro de sermos uma família. Muitas vezes lamento não termos a capacidade de assimilar o que vivemos nos primeiros anos de vida. Por algum motivo a memória guarda num compartimento esquecido esse tempo que só sabemos que existiu porque alguém nos mostra fotografias e diz: “Eras tu.”
A viagem foi maior quando deixámos o eléctrico e passámos a ir a pé para a praia que afinal nem era assim tão longe de casa. Mudámos de vida e de praia. O meu pai continuou a levar-me pela mão até lá.
Um dia encontrámos uma mala no passeio das manhãs quando o mar punha o areal a descoberto. Manipulo a minha memória para dizer que esse pequeno achado mudou a minha vida.
Durante muitos anos eu quis ser a mulher que usou aquela mala. A minha distracção favorita era imaginar essa mulher: cabelos longos, segura, sombra nos olhos, lábios pintados e a audácia de usar uma mala de palhinha azul. Era um azul cósmico que nunca mais vi. Ou então a minha memória não deixa que essa cor se repita.
A mala foi o meu pai que a encontrou na praia. Talvez nas dunas? As dunas eram o lugar mais bonito da praia. Lembro-me quando muitos anos mais tarde lá voltei e tinham sido quase engolidas pelo mar. Havia pouco dessa praia da infância. Havia menos ainda da criança que fui.
A mala azul, encontrada talvez nas dunas, ficou cativa durante muito tempo em nossa casa. Estava arrumada num lugar estratégico onde não se podia mexer e onde eu ia espreitar sempre. Aquela mala era como se fosse um livro que eu ia abrir. E lá dentro uma história estava por contar. Eu, durante anos, contei a minha. Talvez o meu pai tenha outra versão da história.
Não me lembro do exacto momento em que a mala foi parar lá a casa. É vaga a memória que a transporta: talvez desse passeio matinal sim, em que olhávamos para as dunas e imaginávamos vida para além do que se via. Subíamos e descíamos entre cactos e chorões que afastavam os visitantes curiosos. E depois íamos ao mar.
Dessa vez tivemos de ir guardar a mala sem dono. Por que razão a guardámos? Um batom, um vaporizador de perfume, uma sombra para os olhos. Era tudo o que sobrava na mala. Terá havido mais? Alguém fugiu das dunas e deixou para trás a mala? Quem era a mulher que tinha perdido aquele perfume? Nunca soube, mas imaginava-a à minha maneira. Antes de chegar perto da mala, já lhe adivinhava o cheiro: era o perfume de uma noite de Verão. Depois, num ritual clandestino, abria a mala que fazia um barulho seco, e lá dentro nem sinal da areia de uma noite passada. Eu pegava no batom e pensava que um dia seria essa mulher, mas sem fugas. Só a mulher que podia ousar sair com uma mala azul cósmica e nunca prescindir do seu batom. Ter de fugir é mau. Eu queria uma aventura até ao fim.
Hoje, muitos anos passados sobre essa memória, pergunto-me o que terá acontecido à mala. Talvez a minha curiosidade a tenha gasto. A mala acabou por desaparecer como a mulher que um dia a usou.
A criança que fui deu lugar à mulher que eu queria ser.