Efeitos das máscaras nas crianças
Todos precisamos de ler o rosto dos outros em busca de pistas de segurança. Se nos adultos este mecanismo é um pouco mais sofisticado, nas crianças é ainda imaturo por isso precisam de mais informação para serem capazes de recolher essas pistas.
É urgente que se abram as escolas. Sabemos que, mesmo com as novas variantes, as crianças continuam a não ter um papel principal na disseminação do contágio e são mais contaminadas por adultos do que contaminadoras. Também é fácil de verificar que o pico das infecções não teve qualquer correlação com o fecho das escolas e que os números continuariam a cair mesmo que elas continuassem abertas, como aliás se verifica aqui ao lado, em Espanha que mantém as escolas abertas e os números também caíram bastante – e na esmagadora maioria dos países europeus que, mesmo com escolas abertas também viram os seus números cair.
Portugal tem, neste momento as medidas mais rígidas no que diz respeito às crianças, são raros os países que mantiveram as escolas fechadas tanto tempo como nós e na sua esmagadora maioria as regras para o 1.º e 2.º ciclos são mais ligeiras.
Por isso parece-me inaceitável que se pense em criar medidas ainda mais duras. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) europeu não recomendam o uso de máscara antes dos 12 anos de idade e nas escolas, dizem que devem ser usadas apenas nos casos em que o distanciamento físico não seja possível, isto mesmo depois da revisão das normas provocada pelas novas variantes. A Finlândia, a Noruega, a Suécia, a Dinamarca, Holanda, a Inglaterra, a Suíça, a Irlanda, a Letónia e a Bélgica (que tem o maior número de mortes por milhão) estão entre a maioria dos países que só recomendam máscaras depois dos 12 anos de idade quando o distanciamento não é possível e que têm mantido maioritariamente as escolas abertas, sendo que algumas quase nem fecharam.
Porque é que os efeitos do uso de máscara nas crianças são diferentes dos dos adultos? Primeiro porque as crianças têm naturalmente mais dificuldade em controlar os impulsos, por isso, vão mexer muito mais na máscara aumentando a probabilidade de contaminação. Depois porque as crianças ainda estão em desenvolvimento.
Todos precisamos de ler o rosto dos outros em busca de pistas de segurança. Se nos adultos este mecanismo é um pouco mais sofisticado, nas crianças é ainda imaturo por isso precisam de mais informação para serem capazes de recolher essas pistas. Quando não somos capazes de fazer esta leitura ficamos mais facilmente em alerta e as investigações mostram que é mais fácil interpretarmos expressões neutras como sendo negativas. Isto pode causar dificuldades no relacionamento, na adaptação e no desenvolvimento da capacidade de ler as emoções que é fundamental para a socialização e para a empatia.
Um estudo feito com pessoas que tinham sido injectadas com botox há menos de 24 horas e sob o efeito de uma ligeira paralisia facial mostrou que eram menos capazes de se sintonizar com as emoções dos outros, ou seja, de sentir empatia, porque não eram capazes de imitar as expressões faciais que viam associadas a essas emoções. Como adultos conseguiremos eventualmente recuperar destas dificuldades mas não podemos ter a mesma certeza em relação a crianças e jovens em que existem janelas de oportunidade para o desenvolvimento destas competências que não podem ser desperdiçadas, sob pena de que essas aprendizagens nunca venham a fazer-se.
Existem estudos que mostram que a leitura das emoções fica dificultada pela máscara. Em muitos países, de acordo com o CDC, recomenda-se aos professores que a tirem nos momentos do dia em que seja possível manter a distância. E em muitos países não se recomenda que nas creches e berçários os adultos usem máscara. Também já foi demonstrado que o uso da máscara por parte dos adultos pode prejudicar o desenvolvimento da linguagem nas crianças, porque elas precisam de ler os lábios para que esse desenvolvimento aconteça.
Neste momento em que os números estão a baixar um pouco por toda a Europa, as crianças não precisam de regras mais rígidas. O movimento Assim Não é Escola fez uma petição que reuniu mais de sete mil assinaturas que pedia justamente que as regras fossem suavizadas, de acordo aliás com um artigo que assinei também no jornal PÚBLICO juntamente com vários colegas e outros especialistas e que deu origem a uma carta aberta para a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) assinada por quase 200 colegas e que esteve também na base deste movimento. A OPP escreveu também à Direcção-Geral de Saúde, o ano passado, uma carta aberta onde pedia uma flexibilização das regras.
Mas visto que isso não aconteceu é importante reconhecer que as crianças precisam de ser compensadas por tudo o que já passaram. Um grupo de peritos ingleses juntou-se para pedir que seja permitido mais tempo de brincadeira livre às crianças este Verão. Porque esta é a principal forma das crianças se libertarem do stress. É a brincar de forma livre, no exterior e com permissão para correrem alguns riscos que as crianças se desenvolvem, aprendem sobre si e sobre o mundo, libertam tensão e têm oportunidade de calibrar o seu sistema de alarme que lhes permite lidar melhor com os desafios. Mais do que nunca, neste momento, as crianças precisam de brincar. Mas, para brincar as crianças precisam também de ter um certo grau de liberdade e não pode existir uma preocupação obsessiva com a segurança. Essa preocupação obsessiva estende-se ao uso de máscara. Porque para que a criança se habitue a ela precisa de controlar os seus impulsos de querer afastá-la da cara quando fica com calor ou comichão, ou para respirar melhor quando está a correr ou porque simplesmente a está a incomodar em algum momento.
Este controlo dos impulsos só pode surgir de duas formas: ou através do amadurecimento do cortex-pré-frontal que dá à criança um suporte neurológico para que essa possibilidade exista dentro das suas capacidades naturais e que começa por volta dos seis anos mas só termina por volta dos 24 ou 25 anos; ou através do medo – quando assustamos o suficiente uma criança com as consequências das suas acções o seu sistema de alarme fica no comando e isso permite-lhe controlar alguns impulsos. Acontece que esta activação do sistema de alarme tem um preço muito alto. O estudo das experiências adversas na infância analisou as experiências de infância de cerca de 17 mil adultos e mostrou que níveis de stress tóxico na infância estão ligados a todo o tipo de doenças e perturbações na idade adulta, desde a toxicodependência ou depressão, até à obesidade e a problemas cardíacos ou pulmonares.
É verdade que as crianças se adaptam mais depressa do que os adultos às condições exteriores porque o seu cérebro é mais moldável. Mas isto é em simultâneo uma vantagem e uma desvantagem. Porque quer dizer que tudo tem mais impacto nesta fase. Infelizmente já vi muitas crianças que parecem perfeitamente adaptadas ao uso da máscara, mas o que não vemos é o que acontece dentro delas para que essa adaptação aconteça. E o que não vemos são as consequências dessa adaptação para o seu desenvolvimento. Já sabemos que os níveis de ansiedade e depressão aumentaram brutalmente entre as crianças e jovens. E as tentativas de suicídio. Por isso é altura de tentarmos minimizar os danos e não de criarmos mais ainda.
Precisamos de começar com urgência a perceber que certas medidas têm custos emocionais. E que esses custos podem levar à perda de vidas também. Não no imediato, mas a longo prazo. Não podemos continuar fazer contas e a seguir modelos em que o custo emocional de cada medida é ignorado. Não temos o direito de deitar fora tudo aquilo que se sabe sobre o que é importante para o bom desenvolvimento das crianças e jovens. E não temos o direito de lhes pedir que se adaptem mais ainda. Não temos direito de continuar a hipotecar o seu futuro e a impedir o seu bom desenvolvimento. Abram-se as escolas sim, mas não a qualquer custo, não para mandar as crianças para locais com regras mais rígidas do que uma prisão. Abram-se as escolas sim, mas para que sejam um local onde as crianças possam brincar e sentir-se seguras de um ponto de vista emocional.
Psicóloga Clínica