O mundo do tamanho de um quarto e de um teatro de fantoches
Agora, como muitas outras crianças e adolescentes, ela só conhece as personagens do quarto dela. E talvez seja ela, como outras crianças e jovens, quem precisa de ser também ajudada por nós na estranheza deste cenário.
Quando a pandemia bateu à porta, a minha filha tinha pouco mais de dois anos. Tínhamos começado a levá-la mais a actividades para crianças e a espectáculos, iniciado programas de fim-de-semana com teatro para os mais novos, ela adorava. Espantava-se. Lembro-me de alguns dos últimos a que fomos, um na Fábrica Braço de Prata, nós numa ponta da sala, ela toda feliz sozinha no meio da criançada a assistir às peripécias, aquilo estava uma confusão, mas uma confusão alegre, sala cheia, não cabia mais ninguém. Pais e miudagem. Um cenário que agora seria de extrema aglomeração, uma festa e proximidade que me parecem de outros tempos.
Nessa tarde, volta e meia, ela olhava para nós, sentada de pernas cruzadas lá no meio, nós acenávamos encostados à parede, numa ponta da sala, ela mostrava-nos o quão divertida estava com aquela música, as falas das personagens, o colorido, tão crescida e autónoma a dar gargalhadas no meio dos outros meninos.
As actividades para os mais novos, sejam contar histórias, teatro, ou concertos, entre outras, também são momentos de crescimento e de espanto. Tal como acontece connosco, adultos, quando vamos assistir a um filme, a uma peça de teatro ou a um concerto, também os mais novos semeiam novas palavras, novas ideias, novas perplexidades e descobertas, outras perguntas, nesses momentos. A arte não se torna mais pequenina por ser pensada para os mais pequeninos. Longe, muito longe disso. Ainda hoje guardo todos os livros que a minha mãe me deu quando era criança, e deu-me muitos, ainda sei imagens e palavras de cor.
Mas, enfim, depois tudo fechou e, depois, tudo voltou a fechar novamente. Volta e meia, cá em casa mostramos-lhe teatro online, alguém a contar uma história online, e ela vê, por vezes fala com o ecrã, responde a perguntas, como se estivesse a ser ouvida, mas o teatro online, a vida online, não é igual àquela sala cheia de palmas, de gargalhadas, cheia de adultos e de crianças, cheia de interacção e de pessoas de diferentes idades a comunicarem e expressarem-se juntas.
Recentemente, comprámos um teatro de fantoches cá para casa. Mandámos vir pela Internet, agora vive-se, ainda mais, na Internet. Desde então, todas as noites há reis e rainhas, enfiados em mãos, que andam a passear por bosques e encontram bruxas e coelhos e é uma confusão porque um diz que vem aí um lobo, e o teatro nunca mais acaba. Às vezes, ela prefere ser espectadora e sentar-se numa cadeirinha pequenina, com os braços muito postos nas pernas, e quem vai para trás do pano sou eu ou o pai (mais o pai, é verdade, apesar de ter sido eu quem fez teatro na faculdade).
O que acontece a seguir não acontecia quando íamos a espectáculos fora de casa (antes de o mundo ter sido posto em suspenso). O que acontece é que, quando aparece o coelho que vai atacar a rainha, ela levanta-se da cadeira, agarra no fantoche, tira-o da mão do pai, diz ao coelho que aquilo não se faz, e acaba com a peripécia e o perigo. E volta a sentar-se satisfeita na cadeira, salvou a rainha. Ela considera que cumpriu a sua missão, é uma espectadora interventiva. Mas nunca me lembro de gestos deste género quando a levávamos a espectáculos daqueles que acontecem fora de casa, como manda o figurino.
Estas intervenções nos espectáculos a que assiste em casa, homemade por pai e mãe, lembram-me o texto de Alexandre Andrade Razões para salvar Desdémona, quando se refere que o espectador que “salta para o palco e arremete contra Otelo no preciso momento em que este se lança sobre Desdémona para a assassinar tem todas as razões do mundo para agir desta maneira. Quem ousaria censurá-lo?”. Mais: “Se ninguém agir, ela morrerá às mãos do mouro, ali mesmo, perante uma multidão que se deixa ficar sentada na plateia e se obstina em nada fazer.”
Há inúmeras inquietações demasiado importantes neste momento a ensombrar o quotidiano das famílias, pais a perder fôlego na maratona da pandemia, aprendizagens escolares dificultadas, falta de recreio, demasiado tempo em frente aos ecrãs, alterações de rotina para todos. Não ir a espectáculos parece, e talvez seja, um problema de privilégio. Mas não é crime admitir que tenho saudades de ir a um concerto ou ao cinema. E que tenho saudades de levá-la a ouvir histórias, numa roda com muitos outros meninos, a um espectáculo de teatro, saudades de a ver rir quando bate palmas no fim.
Quando tudo isto passar, e há-de passar, e voltarmos ao teatro, não sei se vai continuar a tentar salvar a Desdémona com que se deparar. Agora, como muitas outras crianças, ela interage com as personagens que cria no quarto dela. E, apesar de poderem ser muitas, porque a nossa imaginação é grande, talvez possa ser ela, como outras crianças e jovens, quem precisa de ser também ajudada por nós na estranheza deste cenário todo.