A fé não é um equipamento de protecção individual, mas há quem use

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Se Deus está vivo, passa por muito maus momentos. É provável que tenha um mal assintomático que nos transmite, pois estamos feitos à sua imagem e semelhança.” Arturo Ripstein, realizador mexicano.

O vírus da eterna terça-feira

Quem andar à procura de Deus na filmografia de Arturo Ripstein ver-se-á numa jornada estéril pois se algo parece certo no cinema do realizador mexicano é que não há nele espaço para a redenção. Está claro que Deus morreu ou, se não está morto, não está passar lá muito bem. Como o próprio confirma em entrevista ao El País a propósito do seu último filme, El Diablo entre las Piernas, sobre um casal idoso, as suas discussões, traições e desejos sexuais: “Se Deus está vivo, passa por muito maus momentos”. Estreado nos últimos meses de 2019, o filme, que acabou por ver a sua distribuição internacional afectada pela pandemia, põe de lado a ideia delicodoce da velhice como campo onde os desejos já não medram para retratar paixões intensas, duras, menos adjectivadas e mais adjectivantes: que os corpos enrugados são osso mais frágil e carne mais biliar. Nesse aspecto, uma obra à imagem do seu criador, apaixonado ranzinza que ao longo dos seus 77 anos de vida foi aperfeiçoando o mau feitio: “Para falar de mim, o adjectivo irascível é frequente. E é certo. Sou passional.” E é com essa paixão que fala destes tempos de confinamento como piores do que a prisão, porque pelo menos ali se sabe quanto tempo dura a pena, “aqui os dias estacionam-se, reduzem-se a nada”. Para o realizador, neste tempo de portas fechadas “todos os dias são terça-feira, porque terça-feira é o dia mais lamentável: não é o princípio, nem o meio, nem o fim”.

EL DIABLO ENTRE LAS PIERNAS-Tráiler from FESTIVAL DE MÁLAGA on Vimeo.

Receita para aumento do rebanho

Seis em cada dez americanos que crê em Deus acreditam piamente que o SARS-CoV-2, apesar de o seu nome em siglas muito científicas, não é mais do que um sinal divino. Os 62% de inquiridos da sondagem da Divinity School da Universidade de Chicago e da Associated Press que assim respondem, estão convencidos que este sinal pode ser interpretado como necessidade de mudança, de que a humanidade tem de alterar este rumo que conduz ao desastre. É interessante que apesar dos tempos sombrios e de um acumular de mortos que já supera, nos EUA, três guerras juntas (as duas guerras mundiais e a do Vietname), apenas 1% dos inquiridos tenha afirmado que a sua fé e espiritualidade enfraqueceram com a pandemia. Ao invés, 26% sentiu a sua fé fortalecida. Como escreve o rabino Allen S. Maller, “todos estamos a ser testados pessoalmente como indivíduos e como membros orgânicos de uma nação, de uma sociedade e mesmo de toda a humanidade”. Onde a ciência mostra dúvidas face a uma doença nova, porque precisa de dados e tempo para responder, a religião oferece o conforto dos dogmas e fornece a fórmula ideal de séculos para encarar tempos perturbadores: em caso de dúvida, crê! A verdade dogmática, eterna e inquestionável, é a tenda para o deslocado das incertezas do mundo – por mais que a situação seja precária, tudo podia ser bem pior. Ou, nas palavras do rabino, “as pessoas religiosas devem sempre lembrar-se que os ateístas ansiosos e os descrentes morrem centenas de mortes, enquanto os crentes cheios de optimismo só morrem uma vez”. O que não deixa de ser uma grande frase de propaganda para atrair mais ovelhas para o rebanho: as igrejas monoteístas têm séculos de aperfeiçoamento no domínio do recrutamento de voluntários!

A religião como propaganda política

O Governo de Narendra Modi na Índia, como todos os governos populistas, nacionalistas com base religiosa e de discurso xenófobo, lida mal com as críticas. Para as internas, normalmente usa o aparelho securitário do Estado e/ou a raiva dos militantes de modo a calá-las ou minimizar o seu impacto; com as externas, activa a sua máquina de resposta internacional, que além dos protestos oficiais, inclui ainda um coro de vozes individuais que dão a ideia de uma generalizada indignação do país perante aquilo que deixa de ser uma crítica – seja ela válida ou gratuita – e passa a ser um vil ataque ao país em si, uma interferência externa sabe-se lá com que motivações e com o patrocínio de que interesses. Rihanna é o último alvo desse aparelho megafónico de ataque. A cantora norte-americana cometeu a imprudência de mostrar nas redes sociais (onde tem uns 100 milhões de seguidores) o seu apoio à luta dos agricultores indianos que contestam a reforma agrária que o Governo pretende implementar e que os deixará sem armas face à iniciativa privada. Rihanna tem sido alvo apetecível de críticas nestas últimas semanas e que chegaram agora à questão religiosa. Uma fotografia da cantora e actriz em topless para um anúncio de lingerie com um pendente de Ganesh, o mais popular dos deuses do hinduísmo, permitiu ao Partido do Povo Indiano, de Modi, arrastar a questão para o domínio religioso, onde se sente como peixe na água a acicatar ódios. O deputado Ram Kadam sublinhou no Twitter o “indignante” que é ver Rihanna fazer pouco “de forma vergonhosa do nosso amado Deus #Ganesh”, o que, no seu entender, só tem uma conclusão possível, a de que a artista norte-americana “não respeita a cultura e as tradições indianas”.

“Amor e coerência”

Como missionário, José Luis Garayoa passou por situações complicadas. Sobreviveu à malária, à febre tifóide, esteve no meio da maior epidemia de ébola da história e ainda saiu vivo de um sequestro, tudo na Serra Leoa. Quando lhe perguntaram em 2019, se não tinha medo de regressar à Serra Leoa depois do que lhe tinha acontecido, o frade da Ordem dos Agostinianos Recoletos respondeu “que Deus dá-nos uma quota de medo a cada” e a dele já tinha sido “toda gasta no sequestro”. Colocado em El Paso, no Texas, desde 2016, trabalhava agora, sobretudo, junto das comunidades imigrantes na cidade fronteiriça. Consciente dos perigos do coronavírus, nunca deixou até ao fim de atender às necessidades de quem precisava, mesmo se os seus 68 anos lhe recomendassem algum comedimento. “Não conseguia ver ninguém sofrer ou preocupado com um filho ou um pai e não rezar com ele ou mostrar compaixão”, explica Maria Luisa Placencia, cabeleireira reformada e uma das paroquianas de Garayoa. “Fartei-me de pregar que aquele que ama deve fazê-lo no bom e no mau, na saúde e na doença. E é precisamente nos maus momentos que descobres o tamanho do teu coração”, garantia. Nestes tempos de isolamento profiláctico e de abstinência de contactos, há quem dê um passo em frente apenas com o resguardo da fé, o que não sendo um equipamento de protecção individual reconhecido cientificamente exige coragem ou, nos dizeres, do frade agostiniano: “Amor e coerência”.

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