O mérito de uma medida pública refere-se à sua qualidade intrínseca, avaliada com base na capacidade de alcançar os objetivos propostos, minimizando os potenciais impactos negativos.
Parece não ter havido uma avaliação adequada do mérito do Decreto-Lei n.º 117/2024 com impacto relevante e duradouro do ponto de vista do interesse público. Relativamente à eficácia da medida, ou seja, à capacidade de atingir os objetivos estabelecidos. Neste caso, contribuir para a redução dos preços da habitação e, consequentemente, melhorar o acesso à habitação.
De acordo com as conclusões vertidas na publicação Downs, A. (Ed.) (2004) Growth Management and Housing Affordability: Do They Conflict, Booking Institution Press, o argumento comum de que limitar a oferta de terrenos urbanos necessariamente reduz a oferta de habitação e aumenta os preços de imóveis é contestável. Os autores defendem que um planeamento urbano adequado, sem a necessidade de transformar terrenos rústicos em urbanos, pode, na verdade, reduzir os preços da habitação. Isso pode ser alcançado, por exemplo, através do incentivo a processos de densificação, da mudança de usos, da melhoria de processos de licenciamento ou criação de diferentes segmentos de habitação, promovendo uma maior diversidade habitacional.
Por outro lado, a expansão urbana desordenada frequentemente resulta em custos ocultos, como despesas adicionais com transporte e infraestruturas, que acabam por elevar os custos de habitação e agravar o seu acesso. Assim, não é claro que a transformação de terrenos rústicos em urbanos, conforme proposto, seja uma solução eficaz para o grave problema habitacional.
Adicionalmente, sabemos que a influência do preço do terreno na formação dos preços das habitações tende a ser menos significativa nos segmentos de preços mais baixos, como será o caso das habitações acessíveis que o presente decreto-lei pretende estimular. Nesses segmentos, o custo da construção (diretos e indiretos) tem um peso muito maior no preço final. Exemplificado, o peso do custo do terreno não deve ultrapassar os 20% valor do valor de venda da habitação no segmento médio-baixo. Assumindo, num cenário otimista, que o incremento de solo urbano vai reduzir os preços dos terrenos em 20% a 30%, vamos ter um impacto nos preços de venda das casas de 4% a 6%. Isto no caso de a descida do custo do terreno ser transmitido integralmente ao comprador final. Portanto, mesmo ignorando os custos ocultos acima referidos, esta medida terá, num cenário otimista, um impacto no preço da habitação no segmento de preço médio-baixo negligenciável.
Se a eficácia desta medida é questionável, os seus efeitos colaterais negativos parecem ser amplamente reconhecidos por urbanistas e outros especialistas na área do ordenamento do território. Há uma certa unanimidade entre estes sobre os impactos adversos desta medida, como a degradação ambiental, a fragmentação do território, a desarticulação física e visual dos espaços, aumento dos custos com infraestruturas e o comprometimento de terrenos agrícolas estratégicos para o futuro.
Antes de se equacionar a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, devemos confirmar se a necessidade de mais terreno urbano é real e urgente. Alguém estudou se os terrenos urbanos licenciados, especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa, Porto e Algarve, são ou não suficientes para atender às necessidades de nova habitação nas próximas décadas?
A evidência de mercado sugere que os terrenos urbanos existentes são mais do que suficientes para atender às necessidades de construção de novas habitações no médio e longo prazo. Se é assim, por que razão esses terrenos não estão a ser promovidos para habitação?
O Governo poderá ter interesse em discutir com os responsáveis dos departamentos imobiliários dos principais bancos as razões pelas quais os macrolotes urbanos, alguns com capacidade para a construção de mais de uma dezena de milhares de fogos, não estão a ser promovidos. Essa discussão é fundamental antes de se avançar com uma medida que coloca em causa princípios fundamentais do ordenamento do território.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico